8 de outubro de 2010

PAOLO NOSELLA

ENSINO MÉDIO : em busca do princípio pedagógico(1)
Paolo Nosella(2)

RESUMO: Recentemente, o debate sobre a problemática do ensino médio se intensificou, envolvendo políticos, legisladores, empresários e educadores. Não se trata de um debate novo, porém, nestes últimos anos, ganhou novo fôlego, repercutindo inclusive nos meios de comunicação de massa. O debate se aguçou pelo grande crescimento de matrículas, em decorrência do aumento de concluintes do ensino fundamental. Infelizmente, os dirigentes da sociedade política e civil, ao invés de se regozijarem diante desse crescimento de matrículas, se preocupam em "acomodar" socialmente tamanha demanda de escolarização na expectativa de se aproveitarem da mão de obra precocemente profissionalizada.
No intuito de contribuir para o atual debate sobre ensino médio, este texto traz informações de caráter histórico e considerações teóricas. Defendo a tese de que o trabalho como produção coletiva da existência humana é o princípio educativo geral de todo o sistema escolar. A especificidade pedagógica do ensino médio decorre do momento vivido pelo jovem em busca de sua definição moral, intelectual e social. Por ser a fase final do ensino básico de caráter formativo, não pode ser profissionalizante. É o momento da aprendizagem marcada pela passagem da heteronomia para uma fase cada vez mais autônoma. A consideração de que o ensino médio
deve priorizar a preparação (imediata ou remota) para o mercado é admitir a legitimidade da profissionalização precoce. A atual apologia do ensino profissionalizante e a ampliação desse sistema escolar é uma declaração da falência e do abandono do ensino médio humanista, "culturalmente desinteressado", destinado a preparar dirigentes. Conseqüentemente, é uma indisfarçável expressão do engessamento e do agravamento da dualidade social e escolar. O texto crítica o Estado por não centrar suas políticas públicas no resgate qualitativo de todo o sistema regular não profissionalizante do Ensino Médio.


PREMISSA
Recentemente, o debate sobre o ensino médio se intensificou, envolvendo políticos, legisladores, empresários e educadores. Não se trata de um debate novo, porém, nestes últimos anos, ganhou novo fôlego. O tema repercutiu inclusive nos meios de comunicação de massa, difundindo na sociedade uma convicção generalizada de que, se todo o ensino no Brasil é bastante deficitário, o ensino médio o é mais ainda:
Um balanço da escola pública brasileira, em todos os níveis, no início do século XXI, nos revela o retrato constrangedor de uma dívida quantitativa e qualitativa. Todavia, é no ensino médio em que esta dívida se explicita de forma mais perversa (Frigotto et alii, 2005, 7).

Com efeito, tanto na educação infantil como no ensino fundamental não existem relevantes divergências teóricas entre os educadores. Todos defendem para esses níveis da escolarização um programa pedagógico universal, obrigatório, unitário e de elevada qualidade. No entanto, para o ensino médio, a discordância atinge a própria definição do estatuto teórico-pedagógico. Uns defendem uma formação humanista e científica única e para todos; outros uma formação pré-profissional ou até mesmo profissionalizante; outros ainda defendem a separação entre o ensino médio regular e o ensino técnico e profissional; e outros finalmente defendem o ensino médio integrado ao ensino técnico ou à educação profissional.

Também do ponto de vista administrativo há divergências. Para muitos a formação dos jovens é tarefa exclusiva do Ministério da Educação e das Secretarias de Educação dos Estados; outros consideram que a preparação técnica e profissional é de competência das Secretarias de Desenvolvimento e Tecnologia ou de outras Instituições públicas congêneres. Mas, para outros ainda a formação técnica e profissional é tarefa das instituições voltadas às atividades práticas, pois estas sabem como formar seus quadros produtivos e tendem
naturalmente a criar suas escolas próprias.
Quanto ao currículo e à duração do ensino médio, as opiniões, as iniciativas e a legislação também são muitas e variam: para o ensino médio regular muitos defendem que três anos de estudo são suficientes, porém para o ensino médio integrado se acrescenta um ano; outros acham que o jovem brasileiro entra na universidade cedo demais e que, portanto, todo o ensino médio deveria se desenvolver em quatro anos. Quanto aos cursos técnicos ou profissionalizantes, separados do ensino médio regular, as opiniões sobre sua duração variam muito, desde poucas semanas até um ano e meio ou, no máximo, dois. Em tese e abstratamente, todos defendem a necessidade de um currículo abrangente, que integre elementos científicos, culturais e profissionais (trabalho, ciência, tecnologia e cultura).

A Deliberação do Conselho Estadual de Educação Nº 79/2008, do Estado de São Paulo, é um entre os inúmeros documentos legais que evidenciam a existência de uma enorme multiplicação de tipos de escolas e cursos profissionalizantes. Visa a disciplinar "a implantação do catálogo Nacional de Cursos Técnicos de nível médio no Sistema de Ensino do Estado de São Paulo".
Na verdade é uma tentativa do Estado para controlar e regulamentar os inúmeros cursos técnicos e profissionalizantes de ensinos médios, reflexos da desigualdade social e da degenerescência do sistema educacional médio regular.
Obviamente, o debate sobre o Ensino Médio se aguçou sobretudo pelo grande crescimento das suas matrículas em decorrência do aumento dos concluintes do ensino fundamental. Os dados levantados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2008 (PNAD-IBGE) mostram que o atendimento aos
jovens de 15 a 17 anos, pela primeira vez, superou a barreira de 84% (in: Jornal Folha de S. Paulo, 19/09/09). Infelizmente, diante desse crescimento, muitos se preocupam tão somente em "acomodar" socialmente tamanha demanda de jovens em busca de formação. Esperam, inclusive, tirar proveito material dessa mão de obra juvenil e, por isso, pensam em profissionalizá-la rápida e precocemente. Assim, fazem diariamente a apologia do ensino técnico e profissionalizante. Citemos, como exemplo, o editorial da Folha de S.Paulo:

Mão-de-obra-difícil. A recente aprovação, no Senado, da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica é um passo pequeno, ainda que na direção correta, para preencher uma das grandes lacunas na formação dos brasileiros: o ensino profissional. A rede pretende organizar o setor a partir da integração das atividades dos centros federais tecnológicos, escolas técnicas, agro-técnico e vinculadas às universidades federais. Foram criados 38 institutos, abrangendo todos os Estados e Distritos Federal. Paralelamente à
reorganização, está em curso um aumento considerável no total de escolas. Pelos planos oficiais, o número de instituições de perfil técnico chegará a 354 em 2010 – atualmente são 215. O objetivo é ampliar a oferta de vagas para 500 mil. Se a expansão se concretizar, mais que triplicará o número oferecido em 2003-160 mil. Para ser bem sucedida, é importante que essa expansão contemple principalmente os alunos do ensino
médio. Infelizmente, a responsabilidade da educação profissionalizante tem sido transferida no período recente para o ensino superior. (Jornal Folha de S.Paulo, 28/12/08)

Não nos enganemos, não é amor à Escola do Trabalho. É um movimento político para uns de acomodação social e para outros de exploração de mão de obra jovem. No âmago dessa movimentação política, muitos confessam dúvidas injustas e discriminatórias como: todos precisam ir para a universidade? Por que não priorizar um ensino médio técnico que ofereça um diploma profissional com o qual os filhos de trabalhadores possam ingressar imediatamente no emprego?
Aliás, para muitos, a idéia de oferecer cursos rápidos, práticos, que atendam ao mercado e "acomode" muitos jovens se apresenta como democrática.
Conseqüentemente, dizem, isso irá fortalecer também o tradicional ensino médio "abstrato", "demorado", embasado numa cultura geral "desinteressada" ou "inútil".
No intuito de contribuir para esse debate, o presente texto traz informações de caráter histórico e considerações teóricas. Defendo a tese de que o trabalho é o princípio educativo geral de todo o sistema escolar, sem qualquer destaque para o ensino médio, fase final do ensino básico, de caráter formativo geral. O princípio pedagógico específico do ensino médio decorre do momento vivido pelo jovem em busca de sua autonomia e identidade moral, intelectual e social. Pedagogicamente é marcado pela transição da fase da aprendizagem prioritariamente heterônoma para a fase da aprendizagem autônoma. Qualquer consideração de que o ensino médio deve levar em conta a preparação (imediata ou remota) para o mercado de trabalho é admitir a legitimidade da profissionalização precoce. A atual apologia e ampliação do ensino profissional é uma declaração da falência e do abandono do ensino médio regular, indisfarçável expressão do agravamento da dualidade social e escolar.

O ENSINO MÉDIO NO BRASIL

Dizíamos que o debate sobre Ensino Médio não é novo. Sua dualidade, escola secundária para os dirigentes e profissional para preparar os quadros do trabalho, é antiga e ainda hoje perdura, apesar dos muitos "esforços" para superá-la ou, quase sempre, para dissimulá-la.
Ironicamente, o ensino médio só não foi dual quando, antes do processo de industrialização, simplesmente excluía da escola os jovens destinados ao trabalho:
"A tradição escolar do Brasil pré-industrial era a escola humanista, socialmente distintiva, destinada às elites. Não havia escolas para formar trabalhadores." (Buffa E. e Nosella, P. 1998, pg. 138).
A partir dos anos 30 do século passado, com o advento da industrialização, foi organizado no país um sistema legal de ensino profissional, estabelecendo formalmente a dualidade pedagógica, correspondente à dualidade social:
Como desdobramento da Constituição de 1937, a Lei Orgânica do Ensino Secundário, de 1942, estabeleceu a dualidade do sistema , explicitando que a escolarização, depois do primário obrigatório de quatro anos, teria duas vertentes: o ensino secundário regular – em dois ciclos perfazendo sete anos destinado às 'elites condutoras'(3) e o ensino profissionalizante - também em dois ciclos em sete anos – para as classes
populares. (Dagmar M.L. Zibas, 2005, p.4)

Isso não ocorreu somente no Brasil. Com variáveis, aconteceu no mundo industrializado em geral.
A instituição formal da dualidade do sistema escolar, por contraste, mobilizou muitos educadores idealistas que, por defenderem a igualdade social, levantaram a bandeira da escola única. Lembremos, por exemplo, a proposta de escola única de Anísio Teixeira, que propunha uma escola igual para todas as crianças e jovens a despeito de suas diferenças sociais.
Daí em diante, inúmeras foram as tentativas de harmonizar a escola humanista com a escola do trabalho, quer no âmbito da equivalência dos diplomas quer no âmbito da integração dos currículos. A Lei de Diretrizes e Bases de 1961 (Lei 4.024/61) foi um marco, pois possibilitou aos diplomados das Escolas Técnicas o ingresso no ensino superior. A forma política como isso aconteceu, merece ser registrada. Jorge Amado era deputado pelo Partido Comunista na Câmara Federal e integrava a Comissão de Educação e Cultura. Paschoal Lemme, que o assessorava nas questões escolares, nos diz:
"Eu resolvi fazer um projetozinho para ele apresentar na Câmara. Esse projeto, com apenas dois artigos, dizia o seguinte: todos os estudantes que completarem os sete anos de ensino de grau médio, não importa o tipo, teriam o direito a concorrer ao vestibular para as universidades. Entreguei a ele e, com aquela confusão, não pude explicar exatamente o alcance daquilo. Ele começou a receber telegramas elogiosos de todo o Brasil. Ficou pasmo. Expliquei a ele que só quem fazia o curso secundário é que tinha o privilégio de fazer o
vestibular para o ensino superior. Os outros faziam sete anos, às vezes são rapazes mais amadurecidos até do que esses meninos de famílias mais ricas e, no entanto, estão proibidos.
Só o ensino comercial, de nível bastante mais elevado, mais tarde permitia chegar ao curso de administração. Era isso que estava acontecendo. Eu generalizava o privilegio para todos os que fizeram sete anos de grau médio; todos tinha o direito de provar sua capacidade no vestibular, em igualdade de condições. De certa forma quebrava um pouco aquela organização de Capanema que reconhecia as classes existentes. Sem mascará-las num tipo de ensino unitário, como o profissionalizante. (Lemme, P. Entrevista, relatório, p. 324-
325).

As últimas palavras do Prof.Lemme se referem especificamente à reforma educacional dos governos militares, Lei 5692/71, aparentemente o ponto mais alto da evolução da idéia de escola média única, para todos. É curioso constatar que a aversão ao idealismo pedagógico levou comunistas convictos, como por exemplo o Prof. Paschoal Lemme, a preferir o 'realismo' das leis orgânicas do ensino de Capanema, que subsumem a divisão da sociedade em classes na própria estrutura do ensino, à hipocrisia da lei 5692/71 que propõe a escola única numa sociedade que produz cidadãos cada vez mais diferentes. Nas palavras do próprio Lemme:
O Estado Novo foi um regime muito contraditório. (...) Houve a criação do SENAI e do SENAC que foram consideradas iniciativas interessantes para a formação de mãos de obra. Capanema tinha uma certa rivalidade com aquilo, ele preferia fazer as Escolas Técnicas, uma em cada Estado, que ele acabou fazendo. Por incrível que pareça , acho a organização do ensino secundário que ele fez, muito mais realista do que esta lei da ditadura (5692/71), essa lei de colocar o profissionalizante metido numa escola , uma coisa inteiramente
irreal. Ele fez logo as coisas às claras, fez o ensino secundário, o único que conduzia à universidade, e fez, em segundo lugar, um ensino industrial, um ensino comercial, um ensino agrícola para as classes de nível econômico um pouco...e o ensino normal. Assumiu as classes sociais: não sei se é elogiável, mas
é interessante. (LEMME, P. 1988,não publicada)(4.)

A determinação da Lei 5692/71, estabelecendo três anos de ensino médio (chamado então de ensino de 2º grau), para os jovens de 15 a 17 anos, com profissionalização obrigatória, é bastante conhecida. Houve interferências importantes do Congresso da época na definição da referida Lei. Tanto o Senhor Ministro da Educação, Jarbas Passarinho, como o Prof. Valnir Chagas não assumem a qualificação da lei da profissionalização compulsória como autoritária e ingênua. O fato é que a Lei se caracteriza por esses dois aspectos. O Prof. Walnir, em seu depoimento, assim sintetiza a trajetória legal da integração do ensino profissional com o secundário:

A Lei de Diretrizes e Bases de 1961 gerou muita frustração...No dia seguinte ao da promulgação dessa Lei, começamos a luta.
Anteriormente a essa lei tinha havido a equivalência do ensino profissional com o secundário, em nível de ginásio. Em 1953 houve a equivalência em nível colegial. No entanto, em ambos os casos, o aluno estava sujeito à adaptação às matérias do secundário que ele não tivesse feito, porque a estrada real para
a universidade era, como dizia Capanema, a escola secundária.
A Lei de Diretrizes e Bases deu esse terceiro passo, ou seja, sem adaptação. Porém, no dia seguinte à (promulgação ) da Lei de Diretrizes e Bases, começou-se a dizer: 'quem diz equivalente, não diz igual. Há o dualismo, há uma classe rica ...e outra, apenas equivalente, mas não igual. Aí começou a luta: batalhar pela escola única. (...) Nós não propusemos a escola única, sabendo que não poderíamos caminhar para a
escola única de vez. Exatamente considerando que a sociedade é de classes5. (VALNIR,C. 1988, não publicada).
O fracasso da profissionalização compulsória da Lei 5692/71 dos Governos Militares era previsível: na verdade, sob a retórica de liquidar a escola secundária, verbalista e elitista, escondia-se o projeto de extinguir uma escola formadora de dirigentes,ou de controladores dos dirigentes, fundamental principio unitário da
escola média secundária. O sonho educacional dos militares era universalizar uma escola de técnicos submissos, de operadores práticos. Ou seja, criava-se a unitariedade do sistema escolar cortando a parte melhor da dualidade.
Imediatamente evidenciou-se o artificialismo das inúmeras habilitações profissionais. A escola humanista foi empobrecida e o ensino técnico esvaziado.
O equívoco foi reconhecido e corrigido pelo governo, pois a própria classe dirigente o havia percebido. Assim, em 1982 , foi promulgada a Lei 7.044, determinando que a profissionalização não mais fosse obrigatória e sim opcional de cada escola, isto é, de cada grupo ou classe social.
Restabelecido o realismo escolar, o debate sobre o ensino médio unitário arrefeceu. Todavia, independentemente dos debates e das políticas governamentais, as camadas populares, durante a década de 1980, pressionaram por mais escolarização, inclusive média. Para dar atendimento a essa demanda, o
Estado simplesmente abriu as portas desse ensino, prolongando a política do populismo educacional que facilitava a diplomação sem maiores preocupações com a qualidade da escola. Esse período caracterizou-se pela expansão dos cursos noturnos e supletivos. Democratizava-se a clientela, mas deformava-se o
método, rebaixando a qualidade.

A Constituição de 1988 foi a oportunidade de reacender o debate sobre a educação, a organização do sistema de ensino e sua qualidade. Com vistas à elaboração da nova LDB, o debate sobre ensino médio se polarizou: de um lado (neo-liberal) procura-se requalificar a tradicional escola propedêutica, reforçar a
meritocracia e reencontrar a identidade própria do ensino técnico retirando de seu currículo as disciplinas de conteúdo geral. De outro lado (popular), levantou-se a bandeira da politécnica, densa de significação, embora semântica, conceitual e politicamente inadequada(6.)
A nova Lei de Diretrizes e bases de 1996 buscou superar a contraposição entre a visão neoliberal e a popular, introduzindo a idéia de uma escola média cujo objetivo fosse integrar, no amplo conceito de cidadania, a participação do jovem à vida política e produtiva. Naturalmente, quando os conceito são bastante amplos e ambíguos, abrigam abstratamente todas as posições e cada grupo social fica
concretamente com a sua prática.

Em 1997, o grupo político hegemônico (governo FHC), por decreto federal, "determinou que o ensino técnico, organizado em módulos, seja oferecido separadamente do ensino médio regular." (Dagmar, 2005, p. 8). Estranho decreto: "afastava legalmente o ensino técnico e profissional do ensino médio. O currículo
nacional deste decreto é unificado por 75%, deixando 25% sob a responsabilidade de cada escola. Na verdade, o objetivo real foi liberar o ensino profissional de qualquer limitação ou controle burocrático, deixando o ensino médio regular, não obrigatório, sobretudo o público, no baixo nível a que chegara. Assim, como os governos militares quiseram estabelecer a unitariedade do ensino médio cortando o ensino secundário "retórico e inútil", o governo FHC pretendeu estabelecer a unitariedade cortando o ensino técnico-profissional, isto é, tornando-o administrativamente autônomo e, portanto, "livre" de maiores controles.
Obviamente, esse Decreto constituiu-se no alvo principal das críticas dos que defendem a integração entre formação geral e técnica. Ao Governo Lula coube atender a essa crítica e tentar soluções. Mas, como este governo não é de rupturas, suas políticas não conseguem promover efetivas inovações no ensino médio: assim, o Decreto 5.154/2004 permite tudo: tanto o ensino médio separado como o integrado. O debate está em curso e centra-se sobretudo no âmbito da problemática curricular e na busca de experiências interessantes. As palavras recorrentes são: integração, articulação, interdisciplinaridade e inovação. Os eixos
orientadores do ensino médio devem ser: trabalho, ciência, tecnologia e cultura.
Assim, a primeira iniciativa importante que o governo do PT tomou foi, obviamente, a revogação do Decreto nº 2.208/97. No âmbito das políticas para o ensino médio, essa determinação era entendida como o compromisso político mais importante do novo governo com os educadores progressistas. À separação
obrigatória entre o ensino médio regular e o ensino técnico profissionalizante do governo anterior, haveria de se contrapor, de forma opcional um projeto de ensino médio integrado à educação profissional. Essa integração, a princípio, é irrepreensível, mas, na prática, levanta sérias preocupações, como as
apresentadas pelos Secretários de Educação:
Durante a elaboração da primeira versão da minuta de decreto que revogaria o Decreto nº 2.208/97, a preocupação dos secretários de Educação era a sustentabilidade de um projeto de ensino médio integrado à educação profissional. Além disso, a crítica a esta primeira versão era de que continha questões
conceituais não apropriadas a um texto jurídico (Frigotto, et alii, 2005, p.26, nota 9).

A verdade é que atualmente tanto a sociedade civil como a política estão priorizando a Educação Profissional, conforme se lê no editorial da Folha de S. Paulo, acima citado. Uma pequena minoria defende o ensino médio integrado à educação profissional. Com efeito, o termo/conceito "integrado" é sedutor e
instigante, mas é muito polissêmico, podendo chegar a ser ambíguo e enganoso.
Afinal, "integrar" pode significar justapor, acrescentar e, como bem sabemos, nem currículo, nem instituição ou gestão pedagógica conseguem unificar o que a sociedade separou, consoante o que Marta, Professora que compõe o quadro docente do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia (IFBahia), Campus de Vitória da Conquista, onde leciona Português no Ensino Médio Integrado, me escreveu:
Professor,...."quem sabe podemos encontrar possíveis saídas para alguns problemas com os quais ainda lidamos. Um deles diz respeito à decisão dos jovens, futuros técnicos, para a escolha do curso. Como ingressam, na maioria, com 14 (alguns com treze) anos, são os seus pais , em grande parte, que fazem
a escolha de um determinado curso. Então, no decorrer dos estudos, ouvimos de muitos que não irão seguir aquela carreira, estão ali se preparando para entrarem numa universidade.
Gostam da escola, valorizam-na pelo bom ensino, mas, alguns, se pudessem, estariam em outras somente com o ensino médio. Outro problema, o qual considero mais grave, é que, até hoje, quatro anos após o início dessa modalidade de estudo, Ensino Médio Integrado, não conseguimos, de fato, efetivar a tão desejada integração. Apesar dos esforços (reuniões, estudos, encontros pedagógicos) o que temos, na
verdade, é uma justaposição, como ocorria antes da promulgação da Lei LDB/96. Atenciosamente." (Profª. Marta Quadros Fernandes, 2009, e-mail).


EM BUSCA DO PRINCÍPIO PEDAGÓGICO

A expressão "em busca" indica que a integração entre o sistema escolar e o produtivo não encontrou ainda,historicamente, a formula pedagógica definitiva.
As formas como o homem socialmente produz sua existência, transformando e humanizando a natureza, mudam, como mudam também as concepções e as práticas escolares que articulam trabalho e educação, em decorrência da evolução dos meios de produção e das políticas educacionais elaboradas por um determinado bloco social.
A expressão "princípio" aponta para a causa final do processo educativo. Com efeito, a causa final está intencionalmente presente no ser desde a sua primeira concepção informando todo seu processo, dando-lhe unitariedade e funcionalidade, conforme a celebre expressão da filosofia antiga: o ultimo na execução é também o primeiro na intenção. Ou seja: o objetivo final é o princípio organizativo e executivo de todo o processo. Em outras palavras, o "princípio educativo" é a razão última que informa todo o processo escolar, é a perspectiva real e de longo alcance assumida pelos educandos e pelos educadores. Nesta
perspectiva selecionam-se e tomam sentido os conteúdos.
O termo/conceito "unitário" é utilizado sempre que se quer identificá-lo, e ao mesmo tempo diferenciá-lo, do termo/conceito "único". Por décadas, falou-se em "escola única". De uns anos pra cá preferiu-se dizer "escola unitária". Com efeito, o termo "único" conceitualmente se refere a "idêntico" ou "exclusivo", isto é,
afirma-se que algo é igual ao outro ou que não existe outro como este. De toda forma, o conceito "único" traz uma conotação de precisão mecânica.
Diversamente, o conceito "unitário" diz relação a processo, a porvir histórico, a direção, a construção de um sistema, a algo que se inspira a critérios de unidade.
Assim, o termo "unitário" qualifica melhor os princípios educativo e pedagógico que conferem unidade às instituições formativas e escolares.
A expressão "trabalho como princípio educativo" se refere ao grande debate desencadeado entre pedagogistas a partir da revolução industrial, quando o trabalho industrial foi apontado como principal contexto e referência educacional da sociedade. A tese deste texto me levou a preferir o termo "pedagógico", pois se o princípio educativo se aplica indistintamente a todo o sistema escolar, o princípio pedagógico caracteriza a especificidade metodológico-escolar de cada fase do ensino. Assim, "princípio educativo" não é sinônimo de "principio pedagógico": o primeiro é um conceito mais amplo que se aplica a todo o processo educativo, o segundo é a especificidade pedagógica que diferencia cada etapa do sistema escolar.

O temo/conceito "trabalho" significa o processo ontológico de humanização da natureza que os homens, coletivamente, operam para prover à sua sobrevivência. É o objetivo final que informa e confere sentido a todo o processo ou porvir da sociedade humana, do indivíduo e da natureza. É portanto essencial estabelecer a diferença entre trabalho e profissão. O trabalho não é, de per si, produção de mercadoria; é, como dizíamos, o processo existencial de produção da própria personalidade e da sociedade visando a transformar e humanizar a natureza. Mercadoria é a força de trabalho, instrumento para produzir um bem de troca. Nesse sentido, profissionalização se relaciona com a mercantilização da força de trabalho.

Pareceu-me importante explicitar esses termos e conceitos, uma vez que certas expressões, às vezes, perdem sua significação precisa e se tornam chavões, dogmas engessados, palavras de ordem, ideologicamente úteis em algum momento, mas inadequadas para entender o sentido exato de algumas teses.
Antes da Revolução Industrial, a problemática da integração entre trabalho e educação era traduzida em termos de relação entre teoria e prática. A dualidade social, cultural e educacional marcou, desde os primórdios, toda a civilização ocidental, separando e contrapondo o mundo da necessidade (guerra e negócios) do mundo da liberdade (ócio, filosofia e comando). Este profundo racha social, injusto e cruel, sensibilizou desde sempre corações e mentes humanistas que valorizavam prioritariamente a liberdade, a justiça e a igualdade para todos e que por isso lutaram, por meio do pensamento e pratica, para superar essa dicotomia.
O trabalho como principio educativo só pôde ser pensado e proposto a partir do processo de industrialização, pois, nesse processo, os homens compreenderam que o conhecimento cientifico necessário à industria era fruto da articulação entre as atividades práticas e os estudos teóricos, uma vez que a inteligência e as mãos executavam, conjuntamente, operações segundo regras objetivas teórico-práticas, aprendidas em escolas. Estava, assim, pela primeira vez na história justificada a entrada dos trabalhadores para dentro das escolas.
O marxismo foi a linha teórica que mais levou adiante o ideário iluminista da integração entre artes mecânicas e liberais. Seu fundador, Marx, trouxe para o debate pedagógico a luta contra o estigma da dicotomia entre os que fazem e os que dirigem, afirmando que o processo educativo geral e escolar do homem está embasado no trabalho produtivo industrial, portanto, com ele a escola deve se articular.

Entretanto, o próprio Marx testa progressivamente as formas didáticas da articulação entre trabalho  produtivo e escolar. Assim, em 1848, recomenda "combinar educação e trabalho fabril", referindo-se também à educação infantil (7.)
Essa combinação foi considerada, mais tarde, inadequada por ele mesmo. Com efeito, quase 20 anos mais tarde, nas Instruções aos delegados e no O Capital (1866-67), apresenta pela primeira vez a idéia da educação politécnica e tecnológica, como forma pedagógica de integração do trabalho produtivo e escolar. Mais tarde, em 1875, no Programa de Gotha, a escola é vista por Marx na ótica política da conquista pela hegemonia, afirmando que não pode haver na sociedade burguesa escolas didaticamente iguais para classes desiguais. Em todo caso, Marx não encerrou a busca a respeito das formas didático-pedagógicas da articulação entre o trabalho produtivo e o escolar.
Após a revolução socialista de 1917, a União Soviética implementou as primeiras leis escolares, reafirmando o princípio marxiano da unidade entre instrução e trabalho produtivo com base na formação politécnica. Sobre essa temática, ocorreu na época um memorável debate: de um lado havia os defensores da "morte da escola" (Sulghin e Krupenina)(8) e de outro os defensores da profissionalização precoce chamada também de monotecnia. Contra estas duas posições, se pronunciaram Lênin, Krupskaia e Blonsky defendendo e implementando a politecnicização do sistema escolar. O que importa ressaltar é que nesse debate foram levantadas duas preocupações importantes: a) existem diferentes formas pedagógicas de aplicação da politecnia nos diferentes graus de escolarização; b) é definida a noção de trabalho produtivo mercadologicamente desinteressado", isto é, formativo, inserido na escola.

Quanto à primeira preocupação, o grupo político ao qual Lênin e Krupskaia pertenciam (Narkompros) defendia a identificação conceitual e prática entre o jogo e o trabalho para a escola infantil. Para os alunos do ginásio e do ensino médio, o trabalho de fábrica ou de oficina devia estar "rica e verdadeiramente articulado
com a atividade de estudo". (Mauro, 1980, pg. 193). A própria Krupskaia, sem negar o valor da convivência das crianças e dos jovens com os adultos nas fábricas, "afirmava ser impossível introduzir nas fábricas crianças e adolescentes pois dizia se tratar de um trabalho superior às suas forças". (Ibidem, pg.193). Ao
comentar os laboratórios escolares relacionados com a produção, "insistia que neles não houvesse exclusivamente exercitação". (Ibidem, pg. 193)
Quanto à segunda preocupação, é importante frizar que esses primeiros pedagogistas soviéticos defenderam a noção de trabalho produtivo "desinteressado", isto é, formativo:


"o trabalho, enquanto novo elemento a ser introduzido na escola, era sempre representado como criativo e não repetitivo, fonte de sempre novos conhecimentos e capaz de desenvolver o hábito da organização, da direção e das atividades coletivas."(Ibidem, pg. 193).
É inegável o fascínio que a expressão "trabalho produtivo" e sua intima conexão com o processo educativo escolar suscitava nos educadores socialistas do inicio do século XX. Entretanto, a prática educativa cada vez mais evidenciava que o trabalho produtivo não era de per si educativo se não fosse acompanhado por uma explícita instrução e educação política. Makarenko escrevia:
"a neutralidade do processo do trabalho surpreendeu muito o nosso coletivo pedagógico. Nós estávamos excessivamente acostumados a adorar o principio do trabalho". (Makarenko, in Mauro, 1980, pg.194).

Mais adiante, Makarenko observa que existe contradição entre a afirmação abstrata sobre instrução politécnica e a iniciação concreta dos jovens no mundo do trabalho (Mauro, 1980, 194).(9)
Nas primeiras décadas do século XX, no Instituto de Psicologia da Universidade de Moscou, pesquisadores importantes como Vygotsky, Leontiev, Luria, Elkonin, ao explicarem como o trabalho produtivo é o principio pedagógico da escola deslocaram o eixo de análise do instrumento técnico para o sujeito humano. Nesse contexto histórico, insere-se a contribuição de Antonio Gramsci que, na busca do principio pedagógico do sistema escolar, declaradamente critica as análises centradas no instrumento técnico de produção (tecnologia), preferindo focar o sujeito escolar, o aluno, enquanto integrante da luta hegemônica entre as
classes, no processo de industrialização da sociedade. Em suas análises, a evolução psicológica do jovem toma destaque. A pessoa humana se integra nos processos do trabalho produtivo e de luta pela hegemonia política depois de descobrir sua individualidade que desde seu nascimento havia incorporado
espontaneamente, de forma caótica, mesmo que original, um complexo enorme de relações sociais, culturais, físicas e econômicas. Este indivíduo, ao descobrir e desenvolver sua tendência profunda e seu talento, com constância e disciplina, torna-se uma personalidade consciente. Essa descoberta e desenvolvimento se
dão lentamente, ao longo da carreira escolar; com carinho, com brincadeiras, com disciplina, integrando o "reino da necessidade com o reino da liberdade", isto é, integrando um núcleo de disciplinas e exercícios obrigatórios com atividades e opções do próprio gosto. O amadurecimento da individualidade para
personalidade não pode ocorrer forçadamente, por precoce necessidade de sobrevivência material, mas pela educação disciplinada e amorosa, no tempo adequado.

O trabalho produtivo como princípio educativo geral embasa indistintamente a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio. Com efeito, aprender as quatro operações da matemática no ensino fundamental não é menos importante, com relação ao trabalho produtivo, do que aprender as operações
exponenciais ou de matrizes no ensino médio. Assim como as "brincadeiras" das crianças estruturaram a personalidade do trabalhador, a escolarização disciplinada do jovem a amadurecem.
Em suma, o currículo e os conteúdos, de per si, não especificam didaticamente o princípio pedagógico desta ou daquela fase escolar, pois quer na educação infantil, quer na fundamental e na média narram-se, por exemplo, a mesma história de Tróia ou de Roma ou a "descoberta" do Brasil, acrescentando
apenas alguns aspectos informativos a cada etapa, sem, entretanto, que a relação filosófico-formativa fundamental se modifique. Em outras palavras, a mesma concepção de valores e de ordem social é transmitida por meio de poucos ou muitos dados informativos.
Daí a pergunta: se nem a articulação com o mundo da produção, nem os conteúdos caracterizam didaticamente um determinado grau escolar, qual é o princípio pedagógico específico que diferencia o ensino médio do ensino infantil e fundamental? Existe um princípio pedagógico específico do ensino médio?
Também Gramsci se põe esta questão:
O problema fundamental se coloca com respeito à fase da carreira escolar representada pelo ensino médio, que em nada se diferencia, atualmente, como tipo de ensino, das fases escolares anteriores (...). (Gramsci, 1975, p. 1536).
Para responder a essa pergunta, Gramsci recorre à psicologia social e, no intuito de identificar o princípio pedagógico específico do ensino médio, atribui grande importância à puberdade e à adolescência. Todos passam pela puberdade, embora nem a todos seja dado o direito de vivenciar a adolescência,
enquanto período de seis a sete anos de indefinição, em que o jovem, por meio de experiências orientadas, se define moral, intelectual e socialmente. A conclusão de Gramsci é que o jovem adolescente se caracteriza pelo processo de busca de maior autonomia, livrando-se da dependência mecânica e absoluta dos adultos. È
a fase mais delicada de desenvolvimento da responsabilidade individual, da criatividade na elaboração de sua maneira de aprender, da tentativa para resolver as dúvidas e os problemas sozinho, mesmo que freqüentemente não consiga:
Do ensino quase puramente dogmático (infantil e fundamental), quando a memória desempenha grande papel, passasse à fase criativa ou de trabalho autônomo e independente; da escola com disciplina do estudo imposta e controlada autoritariamente passasse à fase do estudo ou de trabalho profissional onde a autodisciplina intelectual e a autonomia moral é teoricamente sem limites. E isto ocorre logo em seguida à crise da puberdade quando o ímpeto das paixões instintivas e elementares continua a lutar contra os freios do caráter e da consciência moral em formação. (Gramsci , 1975, p. 1536).
Em outras palavras, o principio pedagógico especifico do ensino médio não deve ser buscado na perspectiva profissional, nem nos saberes curriculares e sim no método, embora este não se efetive sem à aplicação daqueles.
É comum entre políticos e educadores destacar a importância da articulação entre o ensino médio e o fundamental. Mas, na prática, no Brasil, o ensino médio articula-se com o superior(10). Entretanto, o fracasso do ensino médio é obviamente um reflexo do fracasso do fundamental, elevado ao quadrado.
Vejamos: há uma aprendizagem própria da escolarização infantil e fundamental.
Quando esta não ocorre, o prejuízo se reflete no ensino médio em medida exorbitante. Por que? Quando um aluno de 2º ou 3º ano do ensino fundamental não aprendeu, por exemplo, a tabuada, o prejuízo será repassado às 4ª e 5ª séries, que, de alguma forma, ainda poderão repará-lo. Porém, se a lacuna
permanecer até o ensino médio, a dificuldade para saneá-la será enormemente maior, "elevado ao quadrado" como dizíamos, porque o adolescente não aceita o método de aprendizagem do fundamental. Gramsci expressa essa idéia com bastante clareza numa carta ao irmão Carlos, onde explica porque na educação
de Mea, filha do irmão, os pais e mestres deveriam estar mais atentos e serem, amorosamente, mais rigorosos:
Freqüentemente se comete na educação das crianças este erro: não se distingue que na vida das crianças existem duas fases muito distintas, antes e depois da puberdade. Antes da puberdade, a personalidade do menino ainda não se formou e é mais fácil guiar a sua vida e fazê-lo adquirir determinados hábitos de ordem, de disciplina, de trabalho; depois da puberdade, a personalidade se forma de modo impetuoso e toda intervenção exterior torna-se odiosa, tirânica, insuportável.
Ora, ocorre justamente que os pais sentem a responsabilidade pelos filhos logo neste segundo período, quando é tarde: entra então naturalmente em cena a palmatória e a violência, que além do mais dão muito poucos frutos. Por que, ao contrário, não se ocupar da criança no primeiro período? Parece pouco, mas o hábito de estar sentado diante da carteira 5, 8 horas por dia é uma coisa importante, que se pode fazer com bons modos até os 14 anos, mas em seguida não se pode mais. (Gramsci, 1975, pg.364).

Finalmente, no Caderno 12, Os intelectuais e o princípio educativo, Gramsci assim sintetiza, coerentemente, o princípio pedagógico próprio do ensino médio:
A ultima fase da escola unitária (ensino médio) deve ser concebida e organizada como fase decisiva, na qual se tende a criar os valores fundamentais do 'humanismo', a autodisciplina intelectual e a autonomia moral necessárias a uma posterior especialização, seja ela de caráter científico (estudos universitários), seja de caráter imediatamente prático-produtivo (industria, burocracia, comércio etc). O estudo e o aprendizado
dos métodos criativos na ciência e na vida devem começar nesta última fase da escola. (Gramsci, 2000, 39)
.
A puberdade é uma revolução orgânica natural e universal que fundamenta o direito à adolescência, isto é, a um período de 6/7 anos de busca para os jovens identificarem e ensaiarem seus potenciais intelectuais, artísticos, científicos. Mas, quando aos jovens foi negada a aprendizagem dos hábitos e habilidades intelectuais próprias do ensino fundamental, no ensino médio torna-se extremamente difícil a recuperação e o caminho para a autonomia e criatividade estará gravemente prejudicado.

Gramsci não expõe esta tese de forma desconectada de sua concepção de vida e de processo histórico civilizatório. Ao contrário, esta tese é o desdobramento filosófico educacional do imanentismo da filosofia da práxis. Ou seja: a idéia do transito da heteronomia escolar (ensino fundamental) para a autonomia intelectual e moral (ensino médio) é uma aplicação pedagógica do que ele afirmara no caderno 11, sobre a passagem do reino da necessidade ao da liberdade (11). Para a filosofia da práxis (que, longe de ser uma expressão
criptológica, sinônimo de marxismo, como muitos disseram, é uma original posição filosófica de Gramsci que, paradoxalmente, o torna mais marxista do que o próprio Marx) liberdade e necessidade, bem como autonomia e heteronomia ou ainda sociedade civil e política, se compenetram na concretude histórica. Não existe, portanto, a não ser ideológica e metafisicamente, um momento histórico de pura liberdade, de autonomia absoluta e de sociedade civil exclusiva. Existe, concretamente, a luta cotidiana do ser humano para ampliar o espaço da liberdade e da autonomia, reduzindo e subsumindo as dimensões da necessidade e da dependência. À luz desta visão filosófica, compreende-se certo privilegiamento e a preocupação de Gramsci para a fase escolar do ensino médio, por ela representar o momento catártico mais delicado e importante na vida da pessoa quando desabrocha o valor da autonomia que é a liberdade de se posicionar com base nas normas e regras aprendidas na educação infantil e fundamental.


Dos anos 1937 até os dias de hoje, passaram-se muitas décadas e o marxismo investigativo continuou buscando a concepção e as práticas pedagógicas mais condizentes com o princípio marxiano fundamental da
articulação entre o trabalho produtivo e o trabalho escolar. Para isso, a contribuição das ciências sociais foi, e ainda é, essencial, particularmente da pedagogia, da psicologia e da sociologia. O princípio da unitariedade da escola básica permanece indiscutível, todavia, deve-se reconhecer que o mundo contemporâneo mudou e que a tecnologia avançou enormemente. Portanto, a escola precisa atualizar-se.
Este direcionamento pedagógico geral, precisa ser aplicado à fase do ensino médio, uma vez que para estes alunos, por estarem na iminência de se tornarem mão-de-obra barata na produção de mercadorias, a ameaça da profissionalização precoce torna-se aguda.
Dentro dessa problemática, um nome importante da pedagogia marxista contemporânea é, sem dúvida, Mário Alighiero Manacorda. Diz ele:
Partindo do fato inquestionável que o mundo atual mudou e se enriqueceu extremamente, e que a escola deve atualizar-se nas coisas deste mundo, não se pode levar em consideração uma divisão, como se fez tradicionalmente e ainda hoje se faz, entre uma escola profissional para preparar os quadros do trabalho,
industrial, mas também tecnológico, informático etc, e uma escola "desinteressada" para os dirigentes. (...) Marx fala de instrução intelectual, física e tecnológica para todos(12.)(Manacorda, DVD, livreto, 2007, p.13).
Manacorda refere-se à clássica fórmula marxiana de "instrução intelectual, física e tecnológica para todos", qualificando-a como "germe do futuro", entendendo dizer que, mesmo tendo vivido em um contexto histórico hoje em grande parte superado, sua fórmula permanece válida também nos dias de hoje.
Do ponto de vista curricular, continua Manacorda, a questão dos conteúdos, difíceis a serem precisados, permanece em aberto. Obviamente, não existe educação sem conteúdos, entretanto, a escolha deste ou daquele conteúdo é tarefa nunca encerrada:
Quanto ao conteúdo da instrução, é difícil estabelecê-lo... Vocês no Brasil, o que devem estudar? Homero e Píndaro ou os Guaranis? Ou então, o mundo de hoje, a China emergente? Qual é a cultura a ser estudada? Os sete reis de Roma ou... É difícil estabelecer os programas, ninguém de nós tem as soluções no bolso. (Manacorda, DVD, ibidem, 2007, p.13-14).

Do ponto de vista político-administrativo, Manacorda afirma, sempre embasando-se em Marx e no conceito gramsciano dilatado de Estado, que a instituição escolar deve evitar a dependência dos governos e das igrejas:
Marx acrescentava outra coisa – e isto é a base da assim chamada economia política – em perfeita coincidência com a idealidade da grande tradição liberal, isto é, que é preciso distinguir o governo do Estado: escola estatal não significa escola submetida ao governo. Precisa excluir governos e igrejas de qualquer interferência na escola, não ensinando matérias que permitam interpretações de partido e de classe.
Assim, existe (em Marx) este dúplice ensinamento: uma escola para todos que seja cultural, física e tecnológica – tecnológica teórica e prática, não a escola pluriprofissional predileta pelos burgueses – e a liberdade de qualquer interferência do poder político. (Manacorda, DVD 2007, pg. 13)

A tese da confluência histórica entre a economia política marxiana e a idealidade da grande tradição liberal do século XIX pode surpreender alguns marxistas de orientação positivista, mas não assusta Manacorda. Talvez se trate do maior legado teórico deste comunista italiano, para o qual Marx não é um teórico do poder e sim da liberdade. A desvinculação entre liberdade e igualdade foi infelizmente a tática bem sucedida dos antimarxistas. Com efeito, ao difundirem a falsa idéia de que o marxismo não prioriza a liberdade, solapa-se o
objetivo final da revolução socialista. Ao contrário: a liberdade para todos é o valor máximo no pensamento de Marx. A igualdade social é a condição para a efetivação da liberdade. Ora, pergunta-se Manacorda, é amar de menos a liberdade quando a se quer plena e para todos? (Manacorda, 2007b, mimeo).

Quanto ao principio pedagógico específico do ensino médio, retoma ele o tema da indefinição natural dos adolescentes que estão em busca de autonomia, identidade pessoal e inserção social. Para a pedagogia marxista, os adolescentes não são individualidades metafísicas ou naturalmente determinadas, fechadas em
si mesmas e engessadas em sua classe social, à guisa de castas. Ajudá-los a descobrir, aos poucos, por meio de repetidos ensaios, sua identidade profunda, é tarefa da formação escolar média, oferecendo uma formação onilateral. Mas, cuidado: formação onilateral ou integral não significa saber fazer um pouco de
tudo ou conhecer os fundamentos científicos de todos ramos da tecnologia e sim saber fazer com excelência algo em sintonia com o próprio talento e, ao mesmo tempo, poder usufruir de todos os bens produzidos pela civilização contemporânea. Está assim lançada uma proposta original do ensino médio a
tempo pleno:
"diante das experiências do mundo moderno nós precisamos mirar o mais possível na preparação do aluno não somente para si mesmo, mas também para entrar na sociedade, se não com a capacidade de ser um produtor de cultura em todos os campos, pelo menos com a capacidade de desfrutar, isto é, de saber
gozar de todas as contribuições da civilização humana, das artes, das técnicas, da literatura. A cultura deve ser direcionada totalmente para todos, facilitando as disposições intelectuais e ao mesmo tempo forçando todo mundo, com firme doçura, a aprender a participar de todos os prazeres humanos". (Manacorda, DVD 2007, p. 21)
Manacorda reflete sobre currículo e escola de tempo integral para o ensino médio, à luz da teoria gramsciana da integração do reino da necessidade com o reino da liberdade. O currículo proposto é estruturado por um núcleo de ensinamentos rigorosos, necessários para o jovem se tornar um homem moderno,e por um conjunto de atividades livremente escolhidas. A escola deve ser o espaço dos adolescentes onde podem vivenciar momentos de formação obrigatória e outros de formação livre:
Para isto se precisa de uma escola que ministre o mais possível ensinamento rigorosos – difíceis a serem determinados – do que é necessário ao homem para ser moderno; mas que possibilite ao mesmo tempo um espaço em que cada um se forme livremente naquilo que é de seu gosto: arte, música, matemática, aeromodelismo, radiotelegrafia, astronomia, esporte, ou até mesmo técnicas artesanais. É preciso que a
escola, ao invés de ser um lugar aberto cinco horas diárias, durante nove meses por ano e pelo resto do tempo permanecer fechada e vazia, seja o espaço dos adolescentes , onde estes recebam da sociedade adulta tudo o que é possível receber e ao mesmo tempo sejam estimulados em suas qualidades pessoais e capacitados de gozar todos os prazeres humanos. (Manacorda, DVD 2007, pg. 21)

Aparentemente, todas as reformas currriculares pretendem integrar núcleos de saberes obrigatórios e optativos, o período do horário escolar tradicional com o outro período. Entretanto, a idéia mais importante da fórmula pedagógica marxiana integradora do reino da necessidade com o da liberdade indica que deve haver a redução progressiva do espaço da obrigatoriedade em função da liberdade. Infelizmente, quando se propõe, por exemplo, que 20% do currículo seja definido pelos alunos e/ou pelas unidades escolares, sabe-se que algumas poucas e pobres atividades didáticas acabam se tornando "optatórias".
Ou ainda: quando o tempo de escolarização se estende para além das 4 ou 5 horas obrigatórias tradicionais, sabe-se que o tempo acrescido não é um tempo de liberdade e sim a mera extensão do tempo da escolarização obrigatória. Assim: o espaço da heteronomia invade e reduz o da autonomia e não o inverso.
Reconheço que a integração das disciplinas do núcleo curricular obrigatório com as opcionais (estágios ou atividades) se constitui no maior desafio didático da atualidade, uma vez que a escola de tempo integral deve ampliar o tempo de formação escolar sem ampliar o tempo da obrigatoriedade escolar.

CONCLUSÃO

Para nós, a grande questão é a seguinte: como priorizar na escola média brasileira a dimensão da formação para a autonomia, quando na sociedade a liberdade para a maioria é tão exígua? Como proteger o direito dos adolescentes a um tempo justo de "indefinição" e de busca, quando um pequeno número de
jovens da classe dirigente usufrui de inúmeros anos de formação enquanto a imensa maioria deles necessita para sobreviver de uma definição profissional precoce? A resposta a essa problemática passa pela luta política para tornar a sociedade mais justa e igualitária e ao mesmo tempo reforçar concepções e
práticas pedagógicas que fortaleçam o ensino médio unitário reduzindo cada vez mais o leque dos cursos profissionalizantes.
No nosso sistema escolar, o próprio termo "médio" desvia o entendimento correto da natureza desta fase escolar. "Médio" significa uma "grandeza eqüidistante de dois extremos" (Huaiss, 2001, p. 1878), isto é, do ensino fundamental e do superior. Trata-se de um termo, portanto, que em si mesmo não diz nada, pois é definido pelos extremos. Quando, na verdade, esta importante etapa do ensino é a fase da plenitude e da maturidade da pessoa; é quando o jovem aprende a produzir e dirigir a si mesmo, como pressuposto básico para produzir e dirigir a sociedade.
Um texto oficial do Ministério da Educação "Ensino Médio Inovador" (Brasília, 2009, p. 1) começa com uma afirmação equivocada:
O Ensino Médio, no Brasil, tem se constituído, ao longo da história da Educação Brasileira, como o nível de maior complexidade na estruturação de políticas públicas de enfrentamento aos desafios estabelecidos pela sociedade moderna, em decorrência de sua própria natureza enquanto etapa intermediaria entre o Ensino Fundamental e a Educação Superior e a particularidade de atender a adolescentes, jovens e adultos em diferentes expectativas frente à escolarização. (Brasília, 2009, p. 3 doc)
A expressão "em decorrência de sua própria natureza" oculta que o Ensino Médio no Brasil (antigo ensino secundário) para os jovens da classe dirigente foi instituído, com bastante clareza didática, consoante a filosofia da educação jesuítica, como preparação para o Ensino Superior. Enquanto para os jovens
destinados ao trabalho, nos primeiros 4 séculos da história brasileira foi negado qualquer ensino e, no século XX, lhes foi oferecida uma escola profissionalizante assistencialista. Somente na atualidade, ensaia-se um ensino tecnologicamente um pouco mais qualificado. Jamais, porém, se pensou em lhes oferecer um
ensino para formar dirigentes ou controladores dos dirigentes.
O mesmo texto oficial, desta vez com razão, embasado em DICK, afirma que a idade, a adolescência e a puberdade não são apenas fenômenos biológicos mas também construções sociais. Entretanto, o texto limita-se a essa afirmação genérica. Não evidencia as diferentes formas injustas e cruéis dessa construção
social brasileira.
Em seguida, o mesmo texto enfatiza a necessidade de articular trabalho, ciência, cultura. Diz que o ensino básico ( fundamental e médio) e superior devem ser pensados à luz dos valores da justiça, igualdade e solidariedade. O texto confessa o fracasso do Brasil na superação da dualidade histórica do ensino
médio, bem como na garantia de sua universalização, qualidade e permanência dos jovens na escola. Afirma, finalmente, a necessidade de se garantir legalmente a obrigatoriedade da escolarização média até os dezessete anos.
A breve referência elogiativa do texto às políticas do Ensino Médio Integrado à educação profissional técnica oculta a problemática desta nova experiência. Com efeito, "integrar", como dizíamos, é um termo sedutor que pode se prestar para justificar ideologicamente uma política de conciliação conservadora.
Entretanto, a falha mais grave do texto oficial aninha-se na informação de que "prevalece a lacuna de programas consistentes no âmbito curricular para o Ensino Médio não profissionalizante, 8.366.100 matrículas (senso 2008), que corresponde a mais de 90% das matrículas do ensino médio regular." (Brasília,
2009, pg. 13). Não se trata de uma simples "lacuna". È um dado estatístico que revela o verdadeiro desastre escolar nacional do ensino médio. Não é um problema que possa ser resolvido com "uma nova organização curricular". Reflete uma grave contradição social, estrutural e a carência de políticas públicas adequadas para o ensino médio não profissionalizante.
O projeto político-pedagógico para o ensino médio precisa centrar-se justamente na análise e fortalecimento desta faixa imensamente majoritária do Ensino Médio não Profissionalizante público, popular, para todos. Precisa-se reduzir, paralela e progressivamente, as inúmeras ramificações profissionalizantes socialmente paliativas, atraindo e absorvendo os adolescentes
nos estudos do Ensino Médio regular público. Se é correto diferenciar algumas modalidades curriculares do ensino médio, poderão existir escolas de ensino médio regular com ênfases curriculares diferenciadas (cientificas, clássicas, artísticas, de comunicação, para magistério, etc.) que preservem, todavia, a
unitariedade entre elas pelo rigor científico, pelos conteúdos essenciais, pela qualidade, duração, espaço físico, permitindo inclusive iguais condições de acesso a qualquer curso superior e com ampla possibilidade dos alunos se transferirem, quando o desejarem, de uma modalidade de escola média para outra. A unitariedade curricular dessas modalidades escolares será garantida ainda por uma disciplina comum sobre a história do trabalho, eixo central formativo teoricamente vigoroso.
Obviamente, diante desta proposta, não raramente levanta-se a objeção:
O que fazer com os milhares de jovens que estão entrando no mercado de trabalho todo ano? Não seria o ensino técnico uma forma de ampliar a formação dos jovens que já estão entrando no mercado de trabalho? Seria injusto negar a estes jovens um processo de qualificação que valorize a sua inserção no 'mercado' de trabalho. Ou seja, o ensino técnico é uma necessidade atual decorrente da dualidade estrutural.Sendo
uma necessidade, devemos também nos ocupar de qualificá-los.
(Prof. Dr. Ronaldo Lima Araújo – E-Mail ao Autor deste, em 14 de set. 2009).

A objeção é precisa. Entretanto, reafirmo que a necessidade decorrente da dualidade estrutural do sistema não justifica o abandono, por parte do Estado do Ensino Médio Público não Profissionalizante. O triste e ininterrupto declínio de sua qualidade começou nos governos populistas (e continua até hoje) mascarado pela
crítica ao elitismo do antigo Ensino Secundário. Com efeito, o antigo ensino secundário foi elitista pela clientela, não pela orientação pedagógica e pela qualidade do ensino. Ou seja, o objetivo de formar dirigentes não é errado em si.
O antigo Ensino Secundário Público precisava ser didaticamente atualizado e democratizado, não rebaixado. Isto é, seu objetivo de formar dirigentes modernos para uma sociedade urbana pós-agrária permanece válido desde que suas portas estejam objetivamente abertas a todos os cidadãos. Para não recuperar qualitativamente o sistema do Ensino Médio regular, o Estado se trincheira ideológica e politicamente em projetos assistenciais de formação técnica e profissional.
Uma política centrada na recuperação da qualidade do Ensino Médio não profissionalizante não significa abandonar os milhares de jovens forçados a entrarem precocemente no mercado de trabalho todo ano. Ao contrário. È sempre oportuno lembrar, inclusive, que a iniciativa privada é muito sensível à demanda
do mercado. Ao Estado compete supervisionar e controlar essas iniciativas, pois sua principal tarefa educacional é oferecer um Ensino Médio Popular não Profissionalizante, de qualidade e universal. Afinal, se a Sociedade Política não cuidar deste Ensino, a Sociedade Civil jamais o fará.
Tenho uma filha de 17 anos, Paola. Irritava-me sua indefinição profissional.
De vezes em quando mudava: do curso de química para o de biologia, deste para o de sociologia ou de filosofia. Um dia, percebi o óbvio. Embora, aparentasse se acomodar na indefinição, não era isso que ela desejava. Ao contrário, a buscava com bastante ansiedade, pois o seu entorno social a pressionava para uma

precoce definição profissional, ao invés de discutir com ela temas de cultura geral relevantes. Ou seja, a indefinição da Paola não era um estado de inércia, de mórbida espera passiva. Era um buscar racional, profundo. Consultava, às escondidas, minha biblioteca, levava algum livro para o quarto. Visitava
universidades, inclusive do exterior. Se relacionava e conversava sobre o assunto com professores, com amigos. Pedia algum dinheiro para assistir palestras, visitar exposições, museus e também para prestar seleção como "treineira".
Convivendo com Paola comecei a defender o direito à indefinição profissional, ativa e dinâmica, pelo menos até os 18/20 anos, para todos os jovens adolescentes.
Para todos? Como defender o mesmo direito para Michael Leão, chamado de Maicom, filho de Neuza, minha empregada doméstica?
Maicom tem apenas 13 anos e cursa a 4º série. Sua mãe é arrimo de família. Diz não ter pai. Quaisquer 5 reais que leve para casa faz diferença no orçamento familiar. Diz que deseja ser como eu, trabalhar em universidade, escrever, viajar. Ou, então, quer ser mecânico ou tapeceiro. A necessidade matará seu direito à indefinição profissional. Um processo de indefinição profissional de 4/5 anos é natural; custa, mas é importante, sobretudo quando se visa a formar um dirigente da sociedade, sto é, um cidadão pleno. É um processo que exige capital cultural, social e econômico. Maicom precisa conviver com livros,
computador, viajar, se relacionar de forma rica e variada, ler e escrever, sem que falte nada de essencial em sua casa.
Maicom será encaminhado para uma prática produtiva imediata e/ou para um curso profissionalizante rápido que o ajude a desempenhar algum serviço remunerado. Qual a tendência profunda ou o talento de Maicom? Vários. Mas não haverá tempo e condições materiais para ele identificá-lo e cultivá-lo. Na melhor
das hipóteses, será uma matrícula entre as mais de 90% do ensino médio regular público.
Quem poderá abrir-lhe o horizonte da possibilidade concreta e pessoal de ser um dia um futuro dirigente ? Como lhe mostrar que no futuro deverá exercer alguma atividade prática produtiva, mas também se tornar um cidadão pleno, isto é, um dirigente? Como fazer com que acredite sinceramente nisto? Quem o
educará nesse sentido, formando-o na profissão para a qual demonstra mais talento e na responsabilidade política? A resposta é que compete ao Estado educar nessa perspectiva todos os milhões de Maicom da Nação, por meio de um estudo de elevada qualidade, de amplo espectro cultural, não assistencialista.
Para conseguir esse objetivo, o Estado precisa priorizar em suas políticas o ensino médio regular, reduzindo aos poucos as inúmeras ramificações de formação profissionalizante. Por isso, é obrigação do Estado possibilitar à família de Maicom sobreviver sem a contribuição imediata deste adolescente, oferecer
um ensino médio rico de recursos didáticos, onde se leiam, entre outros, os Épicos de Homero, o Discurso de Cícero contra Catilina, o Dialogo Sobre os Dois Maiores Sistemas de Galileu, Memórias do Cárcere de Graciliano Ramos. Onde se estudem e discutam os velhos e novos instrumentos tecnológicos; onde se
organizem viagens de estudo para vários lugares do Brasil e também (porque não?) para o exterior; onde os alunos seja orientados e acompanhados individualmente nas atividades de seu gosto, dentro ou fora da escola, durante o período oposto ao horário da escolarização obrigatória. Somente quando Maicom conseguir se projetar espiritualmente como um futuro dirigente desta sociedade, tomarão sentido para ele os debates de cultura geral acima exemplificados. Caso contrário, seu interesse encolherá em aspectos prático-profissionais.
Esse Ensino Médio não é muito caro; muito caros (queridos) sãos os nossos adolescentes, sobretudo os que precisam correr atrás do enorme prejuízo causado pela falta de capital cultural, social e econômico.
À Paola e a Maicom dedico esse artigo, para que lutem pela realização do sonho de seu pai e do patrão de sua mãe.

NOTAS:

1 Texto apresentado no VI Colóquio de Pesquisa sobre Instituições Escolares, promovido pelo LIPHIS do
PPGE da UNINOVE-SP ( 27/08/2009) e no encerramento do V Simpósio sobre Trabalho e Educação,
promovido pela FAE/NETE da UFMG/BH (28/08/2009). O mesmo texto foi apresentado no Seminário Nacional
de Políticas para o Ensino Médio, a convite do Ministério da Educação, Brasília, 23 de set. 2009.
2- Professor do PPGE da Universidade Nove de Julho (UNINOVE-SP) e colaborador do PPGE da
Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR).
3- Cabe aqui um pequeno comentário sobre essa escola destinada às "elites condutoras". O objetivo dessa
escola era formar dirigentes. Mas, atenção: tal objetivo não era equivocado, nem elitista de per si. Aquela
escola era elitista pela clientela que atendia. Infelizmente, ao ingressarem nas escolas os filhos dos
trabalhadores (grosso modo, no período dos governos populista), o objetivo geral da formação escolar popular ao invés de continuar sendo o de formar dirigentes, obviamente, da nova sociedade industrializada e urbana, degenerou o método e preparou operadores de máquinas ou executores de serviços: "Não é a aquisição de capacidades de direção, não é a tendência a formar homens superiores que dá a marca social de um tipo de escola. A marca social é dada pelo fato de que cada grupo social tem um tipo de escola próprio, destinado a perpetuar nestes estratos uma determinada função social, tradicional: dirigente ou instrumental. Se se quer destruir essa trama, portanto, não se deve multiplicar e hierarquizar os tipos de escola profissional, mas criar um tipo único de escola preparatória (primária-média) que conduza o jovem até os umbrais da escolha profissional, formando-o, durante este meio tempo, como pessoa capaz de pensar, de estudar, de dirigir ou de controlar quem dirige."(Gramsci, 2000, 490.)
4 Curioso que também Gramsci faz uma referência em parte elogiativa à "velha escola média italiana, como a
antiga lei Casati a havia organizado, cuja eficácia não devia ser buscada (ou negada) na vontade expressa de
ser ou não escola educativa, mas no fato de que sua organização e seus programas eram a expressão de um
modo tradicional de vida intelectual e moral, de um clima cultural difundido em toda a sociedade italiana por
uma antiqüíssima tradição." (Gramsci, 2000, 45) . Assim, tanto P.Lemme como Gramsci valorizam a
objetividade de uma determinada organização escolar por corresponder ( orgânica) à sociedade que a produz.
Na verdade, os dois autores rejeitam o idealismo hipócrita, apontando para a perspectiva revolucionária que
busca uma escola unitária orgânica à sociedade unitária.
5- Quem desejasse conhecer o processo de produção dessa lei, contado nos detalhes pelo próprio Ministro da Educação que a promulgou, Jarbas Passarinho, e pelo prof. Valnir Chagas, autor principal do projeto, há dois longos depoimentos, transcritos no relatório final de pesquisa, intitulado: Memória e Educação: da história de vida de Educadores à história da Educação Brasileira, Buffa, E., Nosella, P. 1987 (não publicado).
6- A noção de politecnia, entre outros limites, restringia in terminis a formação no estreito horizonte dos
fundamentos científicos e técnicos da produção. A proposta da formação politécnica foi apresentada no
primeiro projeto de LDB à Câmera dos Deputados , em dezembro de 1988, e assim se expressava: "A
educação escolar de 2º grau será ministrada apenas na língua nacional e tem por objetivo propiciar aos
adolescentes a formação politécnica necessária à compreensão teórica e prática dos fundamentos científicos
das múltiplas técnicas utilizadas no processo produtivo". (Brasil,1991, art. 38, in, Frigotto et alii, 2005, p.25)
7- Marx e Engels, Os princípios básicos do comunismo e o Manifesto (1847-48), in: MANACORDA, 2007, p.35-42.
8- MAURO, Rosa. il lavoro produttivo in Makarenko, in: Scuola e città nº 5, maio de 1980, p.193. ed. La Nuova Itália, Firenze,
9- Sobre a história da instrução socialista, Manacorda escreveu três volumes com o título: Il Marxismo e
l´educazione I, II e III , Ed. Armando Armando, Roma,1960. O primeiro volume se refere aos autores clássicos do marxismo (Marx, Engels, Lênin), o segundo trata da evolução da escola soviética e o terceiro da escola nos países socialistas. Dos três volumes, existe, em língua portuguesa, uma síntese do primeiro, Marx e a pedagogia moderna, Alínea Editora, Campinas, 2007.
10 Relacionar o ensino médio com o superior é próprio da cultura educacional jesuítica, do ratio
studiorum, cujo ponto de partida e de chegada do sistema escolar é a universidade.
11 "Eis porque a proposição [de Marx] da passagem do reino da necessidade ao da liberdade deve
ser analisada e elaborada com muita atenção e acuidade." (Gramsci, 1975, p.1489).
12 Na entrevista, a expressão "para todos" é muito enfatizada pelo tom da voz


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VALNIR, Chagas, Entrevista, in: BUFFA, E. e NOSELLA, P., Relatório final da
pesquisa intitulada "Memória e Educação: da história de vida de
educadores à história da educação brasileira". INEP/CNPq,
1988.
E-Mail do Prof. Ronaldo Lima Araújo
Filmes: "Para o dia nascer feliz" e "Escritores da liberdade".

OUTROS AUTORES

SUGESTÃO DE LEITURAS COMPLEMENTARES

LINKS
SOBRE GRAMSCI

O TRABALHO COMO PRINCIPIO PEDAGÓGICO EM MARX, LÊNIN E
GRAMSCI E SUA PROBLEMÁTICA NA ATUALIDADE.

RESENHA



A atualidade da escola de Gramsci

TEXTO


PEDAGOGO DA EMANCIPACAO DAS MASSAS

REVISTA

Um sonho impossível?

ARTIGO

7 de outubro de 2010

Textos : Dr. Marcus Vinicius da Cunha

textos disponíveis na internet :
DR MARCUS VINICIUS DA CUNHA

LINKS


Concepção de ciência e educação


TEXTO

O MUNDO EM MOVIMENTO: JOHN DEWEY EM PERIÓDICOS
EDUCACIONAIS BRASILEIROS

 TEXTO


A psicologia na educação: dos paradigmas científicos às finalidades educacionais.
 TEXTO



John Dewey e o pensamento educacional brasileiro: a centralidade da noção de movimento.

 TEXTO



A Escola Renovada e a Família Desqualificada:do Discurso Histórico-Sociológico ao Psicologismo
na Educação*
 TEXTO



John Dewey: Filosofia, Política e Educação

TEXTO

TEXTOS : DR, RONALDO MARCOS DE LIMA ARAUJO (II)

Considerações iniciais sobre uma pedagogia fundada na Filosofia da Práxis
Ronaldo Marcos de Lima Araujo

A Filosofia da Práxis é entendida aqui como uma compreensão de mundo fundada no pensamento marxista, tal como utiliza Giovanni Semeraro, para quem, nos Cadernos do Cárcere, Gramsci vai gradativamente substituindo a expressão “materialismo histórico”, ainda utilizada para designar o marxismo, por Filosofia da Práxis. Com isso, Gramsci procura não apenas se subtrair à censura carcerária, mas, principalmente, visa a contribuir para a consolidação e atualização da nova concepção de mundo (SEMERARO, 2005, p. 29).
Marx (1975) deixou claras as limitações e impossibilidades de o Estado, erguido sobre o solo da sociedade burguesa, assegurar o pleno desenvolvimento cultural do trabalhador. Para este pensador uma concepção de educação de base socialista deveria, pelo menos, ter reclamado escolas técnicas (teóricas e práticas) em ligação com a escola primária.
A integração, portanto, entre trabalho intelectual e trabalho produtivo é a essência de sua “proposta” de educação. E, quando ele ressalta a necessidade de aulas teóricas e práticas nas escolas técnicas, fica-nos a indicação da necessidade de os alunos desenvolverem o hábito do manejo das ferramentas (a técnica), junto com a aquisição do conhecimento dos fundamentos dessas técnicas (a ciência).
Marx considerava tão importante a associação entre trabalho intelectual e trabalho produtivo que propõe como absolutamente necessária a indicação do limite de idade para o trabalho infantil, mas, trata como reacionária a proibição geral do trabalho da criança. Resguardando a proteção para elas, [...] a ligação precoce do trabalho produtivo com a instrução é um dos mais poderosos meios de transformação da sociedade hodierna (MARX, 1975), o que implica, pois, no reconhecimento da necessária ativa-ação de aprender do sujeito que apreende, de modo que a criança possa, desde cedo, ir articulando o fazer ao pensar, numa sempre unidade teoria-prática. Não se trata, pois, de uma educação voltada tão somente para o domínio de conteúdos, mas do mergulho no fazer científico pelo contato com atividades produtivas, ou seja, com as práticas materiais que foram possibilitando a produção de determinado conhecimento.
A integração entre trabalho e educação é também inferida nas formulações do educador russo Pistrak (2005), para quem a educação destinada aos trabalhadores exige uma interação entre trabalho e atividades culturais e políticas que possibilitem ao educando uma formação dinâmica, voltada para a luta de classes, permitindo-lhe, por conseguinte, a capacidade de se inserir nas relações sociais por meio dos conhecimentos advindos dessa interação. Trata-se, então, de uma reflexão que considera a importância dos conhecimentos oriundos da materialidade humana, via trabalho, que garantam ao aprendiz condições de tornar-se também dirigente na sociedade. Pistrak (2005) defende também uma escola permeada pelo trabalho, de modo que os aprendizes atinjam não somente o ato de estudar a realidade atual, mas por ela se deixem impregnar, numa alusão possível à tese gramsciana de que a educação se dá pelo conteúdo e pelo método, entendidos como os conhecimentos oriundos do trabalho humano e a capacidade de se aprender a se apropriar desse conhecimento pela disciplina e auto-gestão.
Na mesma direção encontra-se Gramsci (1978), para quem a articulação trabalho e educação prescinde de uma

[...] escola única inicial de cultura geral, humanista, formativa, que equilibre equanimemente o desenvolvimento da capacidade de trabalhar manualmente (tecnicamente, industrialmente) e o desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual. (GRAMSCI, 1978, p. 118)

Para o filósofo italiano Gramsci, assim como em Marx, o trabalho constitui-se elemento constitutivo do ensino, havendo a partir desse autor a integração do trabalho como momento educativo no processo totalmente autônomo e primário do ensino. E, como já exposto, o trabalho se inseriria no ensino pelo conteúdo (a cultura – a ciência) e pelo método (métodos ativos) (GRAMSCI, 1978, p. 135).
É a cultura, pois, produto do trabalho humano, e é o seu domínio de modo ativo que permite formar o dirigente onilateralmente. Nunca é demais enfatizar, entretanto, que a inserção do trabalho no ensino se daria pelo processo educativo e com a evolução da técnica. Segundo Manacorda (1991, p. 137), “Gramsci não fala de trabalho industrial, de inserção de crianças na fábrica, mas sim de desenvolver nelas a “capacidade de trabalhar” industrialmente, num processo escolar coordenado com a fábrica, mas dela autônomo”. Gramsci, assim, desenvolve a tese marxiana de articulação entre trabalho e educação.
Alguns princípios orientadores de uma perspectiva gramsciana de educação, a partir de MANACORDA, (1991) podem ser entendidos como:
a) a idéia de que a educação deve promover o desenvolvimento integral dos indivíduos (omnilateralidade), que seria buscado por meio da articulação entre trabalho e ensino que deveria servir para formar homens onilaterais, ou seja, promover um equilíbrio harmonioso de todas as faculdades intelectuais e práticas, e somente depois a especialização.Gramsci também criticava o espontaneísmo e o individualismo. Este pensador italiano debateu com as pedagogias libertárias, em cujo individualismo vê comprometida toda possibilidade de desenvolvimento integral (MANACORDA, 1991, p. 141). Não basta, pois, deixar tão somente a criança exposta ao ambiente para haver aprendizagem, é preciso que sejam coordenadas as ações de aprendizagem.
Gramsci também debate com o progressivismo. Não concorda que a criança seja um novelo, a partir do que o ensino vá apenas desenrolando suas características inatas. Pelo contrário, postula o homem como produto histórico e, portanto, passível de ir construindo seus conhecimentos na interação com outros homens, no fazer coletivo.
b) Crítica ao espontaneísmo. Ao fazer uma análise da natureza histórica do homem, critica o espontaneísmo como meio de conformação. Defende a escola ativa e com objetivos articulados com a solidariedade social e com o desenvolvimento individual e social.
c) Defesa da educação de bases científicas: Gramsci defendia uma educação que se apoiasse em bases científicas, de modo a enfrentar as concepções mágicas e folclóricas (MANACORDA, 1991, p. 145).
Em conformidade com as linhas de pensamento aqui identificadas com o marxismo, Saviani (2007) também advoga a integração entre as capacidades de pensar e de produzir como imprescindível para se instaurar uma lógica educativa interessante aos trabalhadores. Essa seria uma estratégia de enfrentamento à dualidade educacional brasileira segundo a qual de um lado têm-se uma educação voltada para o saber-fazer, destinada aos trabalhadores, e de outro lado, uma educação voltada para o saber-pensar, destinada às elites econômicas e políticas. De um modo geral, essa dualidade corresponde à divisão técnica do trabalho que aparta os trabalhadores de funções operativas dos demais com funções de concepção e gerência dos processos.
Saviani (2006) destaca que no modo de produção comunal os “[...] homens se apropriavam coletivamente dos meios de produção da existência e nesse processo se educavam e educavam as novas gerações”, não havendo aí divisão em classes, sendo tudo feito em comum.
Entretanto, a divisão social em classes provocou uma divisão também na educação, produzindo-lhe a cisão em sua unidade, antes “[...] identificada plenamente com o próprio processo de trabalho”. Com o escravismo, por exemplo, destaca o autor, passou-se a ter duas modalidades bem díspares de educação, como já frisamos:

[...] uma para a classe proprietária, identificada como a educação dos homens livres e outra para a classe não proprietária, identificada como a educação dos escravos e serviçais. A primeira, centrada nas atividades intelectuais, na arte da palavra e nos exercícios físicos de caráter lúdico ou militar. E a segunda, assimilada ao próprio processo de trabalho. (SAVIANI, 2006)

Além do mais, é essa separação entre escola e produção que vem refletindo, segundo Saviani, “[...] a divisão que foi se processando ao longo da história entre trabalho manual e trabalho intelectual”. Isto posto, Saviani destaca também que essa cisão acabou por promover a busca da burguesia para atrelar a educação, por meio da escola, às necessidades de produção, instaurando-se as dicotomias entre escolas profissionalizantes para os trabalhadores e escolas das ciências para a classe dirigente: “[...] o impacto da Revolução Industrial pôs em questão a separação entre instrução e trabalho produtivo, forçando a escola a se ligar, de alguma maneira, ao mundo da produção”. E conclui:

No entanto, a educação que a burguesia concebeu e realizou sobre a base do ensino primário comum não passou, nas suas formas mais avançadas, da divisão dos homens em dois grandes campos: aquele das profissões manuais para as quais se requeria uma formação prática limitada à execução de tarefas mais ou menos delimitadas, dispensando-se o domínio dos respectivos fundamentos teóricos; e aquele das profissões intelectuais para as quais se requeria domínio teórico amplo a fim de preparar as elites dirigentes para atuar nos diferentes setores da sociedade. A referida separação teve uma dupla manifestação: a proposta dualista de escolas profissionais para os trabalhadores e “escolas de ciências e humanidades” para os futuros dirigentes; e a proposta de escola única diferenciada que efetuava internamente a distribuição dos educandos segundo as funções sociais para as quais se os destinavam em consonância com as características que decorriam de sua origem social. (SAVIANI, 2006)

É em oposição a essa concepção dualista de educação que se insurgem Marx, Gramsci, Pistrak e Saviani, buscando-se uma posição contra-hegemônica que retoma o trabalho como princípio educativo para a definição de políticas e estratégias de educação para os trabalhadores.
Para além da questão terminológica, é importante observar que, do ponto de vista pedagógico, o desafio para a construção de uma educação profissional focada nos interesses da classe trabalhadora está em, considerando a realidade concreta destes, promover a integração entre formação intelectual-política e trabalho produtivo.
Lombardi (2005), inspirado nos ensinamentos de Suchodolski, Manacorda e Makarenko, identifica três direções que deve assumir a formação profissional sob uma perspectiva marxista:
i. A crítica à educação, ao ensino e à qualificação profissional burguesa;
ii. A afirmação da relação do proletariado com a ciência, a cultura e a educação.
iii. A educação comunista e a formação integral do homem – a educação como articuladora do fazer e do pensar – a superação da monotecnia pela politecnia (LOMBARDI, 2005). 

Sob esta perspectiva, este autor afirma o conteúdo classista da formação profissional, orientando-se para a ampliação, sem limites, das capacidades filosóficas, científicas, artísticas, morais e físicas do trabalhador, pensadas integradamente como partes de uma totalidade.
Também Frigotto (2001), ao propor bases para uma educação profissional emancipadora, na mesma direção indica cinco aspectos que devem orientar um projeto de formação de trabalhadores, entre estes destacamos a idéia de integração, em um mesmo projeto, da dimensão política democrática (contra-hegemônica), da formação profissional articulada à educação básica e da formação ético-política, orientada pela luta política por um Estado que governe com as organizações da sociedade pelas maiorias.
Nesta direção, reconhece-se que a dimensão pedagógica das estratégias de formação de trabalhadores revela e é revelada no projeto político ao qual está associada, assim, um desenho de educação profissional que se compromete com a qualificação e a valorização dos trabalhadores visa, também, o fortalecimento político desta classe. Os projetos de qualificação efetiva dos trabalhadores se articulam, necessariamente, com o projeto político de emancipação social fundado nas idéias socialistas. Do ponto de vista pedagógico, este projeto requer uma formação de bases científicas, que permita o reconhecimento das leis da natureza e das leis da sociedade, e práticas formativas orientadas pela idéia de práxis, reconhecendo a necessidade de desenvolver as capacidades de pensar, de produzir e de transformar a realidade em benefício da humanização. Esta é a teleologia de uma pedagogia transformadora.
Considera-se, então, que é necessário o estudo de um conjunto de experiências formativas que podem ter ensinamentos preciosos para a construção de uma proposta pedagógica de educação profissional que sirva aos interesses dos trabalhadores e de um projeto de sociedade radicalmente democrática. Entre estas destacamos as experiências de movimentos sociais organizados, tais como o movimento sindical e o MST – Movimentos dos Trbs Sem Terra, bem como outras, de iniciativa de governos, em especial articuladas ao projeto de ensino médio integrado e, em particular, ao PROEJA , que têm procurado se orientar, pelo menos conceitualmente, por referências próprias da Filosofia da Práxis.
De qualquer modo, um projeto democrático de educação profissional deve pressupor um posicionamento frente à histórica dualidade da educação profissional brasileira, sendo necessária uma nova postura frente aos saberes, às práticas de ensinar e de aprender, aos procedimentos de organização curricular, aos procedimentos de avaliação, às estratégias de gestão e à organização dos tempos e espaços orientados pelas necessidades de ampliação, sem fim, das diferentes capacidades humanas, inclusive as de trabalho, de modo a promover a autonomia frente aos processos de trabalho e o projeto de uma sociedade democrática.
Deve-se reconhecer, no entanto, que a condição para a construção de uma educação profissional qualitativamente nova passa pela sua emancipação em relação ao controle exercido pelas condições materiais de reposição dos pressupostos da dominação do capital, e com isso a superação do referencial pragmatista e utilitarista que a vem subsidiando e legitimando.
Sob uma perspectiva marxista podemos afirmar que o desenvolvimento da cultura e da sociedade nunca pode ser superior ao da configuração econômica, o que supõe a incondicional correspondência entre desenvolvimento econômico e desenvolvimento cultural. Nesse sentido, tem limites o desenvolvimento humano, tanto do ponto de vista econômico quanto cultural, nos marcos do capitalismo e somente o florescimento de uma sociedade estruturalmente igual pode permitir o pleno crescimento da riqueza e da cultura. Assim, não se pode levantar a expectativa de que as experiências pedagógicas a serem estudadas possam concretizar um projeto de uma pedagogia capaz de desenvolver a onilateralidade humana, isso significa reconhecer que

Numa fase superior da sociedade comunista, depois de ter desaparecido a servil subordinação dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, também a oposição entre trabalho espiritual e corporal (alienação); depois de o trabalho se ter tornado, não só meio de vida, mas, ele próprio, a primeira necessidade vital; depois de o desenvolvimento omnilateral dos indivíduos, as forças produtivas terão também crescido e todas as fontes manantes de riqueza co-operativa jorrarem com abundância [...] (MARX, 1975, 166).

O que principalmente resulta das considerações acima feitas é que, como diz Mészaros (2005), uma educação para além do capital pressupõe, em última análise, a própria derrocada do capital. A educação que toma o trabalho como princípio educativo já é um passo nessa direção. Entretanto, projetos educacionais que procuram se fundar em conceitos e formulações próprias da Filosofia da Práxis precisam ser melhor estudados até para que possam ser potencializados naquilo que têm de bom e minimizados em suas dificuldades.

1.2. Considerações sobre práticas formativas

Partimos, de início, da consideração de que a didática pode ser entendida enquanto teoria geral do ensino , sendo base essencial para as metodologias específicas e para uma didática geral.
A didática deve ser entendida, pois, como uma verdadeira disciplina de integração que pressupõe a dialeticidade entre a teoria e a prática docente. Esta integração tem sido pensada, no entanto, de diferentes maneiras: a) por justaposição, b) com subordinação de um elemento a outro (da prática sobre a teoria ou da teoria sobre a prática) e c) sob a perspectiva da unidade indissolúvel.
Para Candau (1995) a Didática tem sido entendida ora sob uma perspectiva dicotômica e ora sob a perspectiva da unidade. A visão dicotômica que separa teoria e prática se revela de duas formas: a) na perspectiva dissociativa, que separa mecanicamente os elementos, isolando-os e confrontando-os (percepção vulgar); e b) Na perspectiva associativa (positivo-tecnológica), que separa os pólos sem oposição. A prática é uma aplicação da teoria (percepção de uma relação mecânica de dependência). Desvincula o saber do fazer. Na visão dicotômica (associativa) reduz-se a teoria à simples organização, sistemática e hierárquica das idéias e estabelece-se uma relação hierárquica autoritária de mando e obediência (a teoria determina a prática ou, inversamente, a prática exige e a teoria se faz útil). Essa visão predomina nas práticas de formação do educador, inclusive da educação profissional.
Sob a ótica da unidade, a distinção entre teoria e prática se dá no seio de uma unidade indissolúvel. Pressupõe uma relação de autonomia e dependência de um termo em relação ao outro. Na visão de unidade a teoria nega a prática imediata para revelá-la como práxis social, a prática nega a teoria como um saber autônomo, como puro movimento de idéias e a teoria e prática são tidos como dois elementos indissolúveis da “práxis”, definida como atividade teórico-prática. A separação entre teoria e prática, portanto, é só analítica.
Algumas premissas da visão de unidade devem ser consideradas, ainda conforme Candau (1995): a prática é a fonte da teoria, a teoria é a antecipação ideal de uma prática que ainda não existe, a prática, como atividade que transforma a realidade natural e social, é o critério da verdade e a prática é entendida como atividade objetiva-subjetiva.
No atual debate acerca da educação profissional e, especificamente, acerca de uma didática da educação profissional, tem sido muito presente a visão dicotômica que pode ser entendida, por exemplo, na separação e distinção entre profissionalização e escolarização (visão dissociativa) ou como a “soma” da profissionalização com a escolarização. Esta visão dicotômica também se revela na separação entre as disciplinas teóricas e as disciplinas práticas, entre os saberes que desenvolveriam o pensar e outros que desenvolveriam as capacidades de fazer. Outra perspectiva, fundada na idéia de unidade, pressupõe a indissolubilidade entre teoria e prática.
Considerando uma possível didática da educação profissional, a perspectiva integradora deve pressupor:
• A formação do homem em suas amplas capacidades (teórico-práticas) como principal referência pedagógica;
• Que a teoria e a prática educativa constituiriam o núcleo articulador da formação profissional;
• A teoria sendo sempre revigorada pela prática educativa;
• A prática educacional sendo o ponto de partida e de chegada;
• A ação docente se revelaria a partir da prática concreta e da realidade social;
• O currículo assumiria características teórico-práticas.

1.3. O desafio do ensino integrado
Em pesquisa recente (Araujo et all, 2008) identificamos que, no Pará, do ponto de vista das estratégias de organização e de construção das práticas formativas, ainda convivem nas instituições práticas tradicionais junto com novas outras pautadas na idéia de competências. Prevalece mesmo uma confusão sobre conceitos de referências e sua articulação com práticas formativas.
Também sobre o ensino integrado são muitas as dificuldades de compreensão acerca de sua materialidade didática. Estas aumentaram na medida em que o ensino integrado passou a constituir uma referências para as políticas oficiais Dio governo federal que passou a assumi-la como referência prioritária para a organização do ensino médio, profissional, não profissional e na EJA.
Sobre o conceito de ensino integrado ainda persistem várias confusões, próprias de uma noção que tem servido de referência para práticas formativas há muitos anos no Brasil. Em trabalho recente Santos (2008) identifica diferentes perspectivas de ensino integrado na história da educação brasileira, nos projetos dos jesuítas, nas formulações de Rui Barbosa e dos Pioneiros da educação, presente ainda nas idéias de Anísio Teixeira, Paulo Freire e Guiomar Namo de Melo. Nas diferentes formulações á idéia de integração é compreendida diferentemente. Também Barros (2008) identifica presente a idéia de integração em projetos de escolas de tempo integral.
Buscaremos compreender o ensino integrado aqui como uma proposta identificada com o projeto estratégico da escola unitária. Trata-se de uma formação humana que procura romper com as dicotomias geral e específico, político e técnico ou educação básica e técnica, heranças de uma concepção fragmentária e positivista de realidade humana.
Para Ciavatta et al (2005, p 15) o ensino médio integrado é qualificado como uma proposta de “travessia”, palco de lutas para

[...] afirmá-lo na direção da escola unitária e politécnica [..]” que supere o dualismo, a fragmentação e o aligeiramento presentes na educação profissional no ensino médio para jovens trabalhadores.

Enquanto “travessia”, portanto, o projeto da formação integrada parte de um conjunto de referências próprias de uma formulação pedagógica inspirada na Filosofia da práxis que, mesmo reconhecendo os limites de um projeto educacional humanizante sob á égide da sociabilidade do capital, compreende a necessidade enfrentamento do desafio atual, ético e político, de enfretamento a um modelo de formação fragmentado e que dificulta a compreensão da totalidade social.
O tema do ensino integrado vem sendo colocado em destaque nos debates educacionais contemporâneos brasileiros, entre outros motivos, pelo fato de ter sido assumido formalmente como referência pedagógica para diferentes projetos do governo federal, em especial direcionados ao ensino técnico, ao ensino médio e à EJA.
Do mesmo modo, a atualidade do tema exige um aprofundamento das experiências construídas sob este emblema e, também, favorece a organização de referências concretas de práticas pedagógicas orientadas pela necessidades de formação dos trabalhadores.
O debate sobre o ensino integrado deve ser entendido sob o panorama da educação brasileira que, como nos diz Saviani (1999), é marcado por uma luta histórica entre uma pedagogia pragmática e uma pedagogia da práxis.
Assim, as idéias aqui colocadas sobre os princípios de um ensino integrado serão marcadas por esta direção, buscando demarcar estas duas perspectivas antagônicas.
A idéia de ensino integrado pressupõe a articulação entre trabalho, ciência e cultura e entendemos que esta articulação deva ser mediada pela cultura sistematizada e pressupor uma teleologia. Estas são as diferenças fundamentais com outras propostas pragmáticas de educação integrada, a perspectiva de construção do futuro e não de adaptação e ajuste ao presente, à sociabilidade dada, própria de uma pedagogia de cunho liberal.
Mesmo no âmbito da esquerda há controvérsias sobre esta integração, de um lado estão alguns educadores que, apegados ao conteúdo do documento “Crítica ao Programa de Gotha” de Marx (1976), defendem a articulação direta entre trabalho e ensino. Esta perspectiva originou, na década de 1980, uma tendência que se materializou na chamada “educação pelo trabalho” e que hoje impregna as experiências educativas do MST – Movimento dos Trabalhadores Sem Terra.
A construção e implementação de uma proposta de currículo integrado representa um salto que implica enorme esforço de investimento em educação, ciência e tecnologia e em infra-estrutura
A idéia de uma educação integrada, portanto, é um desafio pedagógico e político que deve mobilizar aqueles pesquisadores e educadores que buscam articular ações educativas com um projeto de uma sociedade de iguais.

1.4 . Conteúdos, organização e seleção: Possibilidades de integração.

As propostas apresentadas, entre outras, tratam da aprendizagem baseada em: problemas; centros de interesses; projetos; complexos temáticos; investigação do meio. Entretanto, apesar de potenciais vantagens que essas metodologias trazem ao se aproximarem mais os conhecimentos escolares dos científicos, também existem riscos e fragilidades que precisam ser trabalhados através do planejamento de ensino e do diálogo entre os educadores.
Uma das possibilidades de integração é a própria organização por disciplinas, ao se fazer um recorte do real e aprofundar conceitos articulada a atividades integradoras (interdisciplinares), como forma de vivenciar, simular a realidade, tendo como objetivo a compreensão entre a relação parte totalidade (SANTOMÉ, 1998).
Como forma de resolver essa questão ou, pelo menos, minimizar os prejuízos decorrentes da organização disciplinar dos currículos, têm surgido, ao longo da história, propostas que organizam o currículo a partir de outras estratégias. É muito rica a variedade de denominações. Mencionaremos apenas algumas dessas metodologias, a título de exemplo. São propostas que tratam da aprendizagem baseada em: problemas; centros de interesses; projetos; complexos temáticos; investigação do meio, entre outras.
Essas metodologias buscam romper com a centralidade das disciplinas nos currículos e substitui-las por aspectos mais globalizadores e que abranjam a complexidade das relações existentes entre os ramos da ciência no mundo real.
Nessa esfera tem-se como referência Machado (2005):
Abordagens embasadas na perspectiva de complexos temáticos:
a) Concentricidade de temas gerais, ligados entre si; Temas integradores, transversais e permanentes; temas que:
- Abranjam conteúdos mínimos a serem estudados;
- Possam ser abordados sob o enfoque de cada área do conhecimento;
- Possibilitem compreender o contexto em que os alunos vivem;
- Atendam as condições intelectuais e sócio-pedagógicas dos alunos;
- Produzam nexos e sentidos;
- Permitam o exercício de uma pedagogia problematizadora;
- Garantam um aprofundamento progressivo ao longo do curso;
- Privilegiem o aprofundamento e a ampliação do conhecimento do aluno.
b) Abordagens por meio de esquemas conceituais:
- Foco em conceitos amplos;
- Conceitos escolhidos que mantêm conexão com várias ciências;
- Cada conceito é desenvolvido em diversos contextos;
- Cada conceito é enriquecido pelas diversas contextualizações.
c) Abordagem centrada em resoluções de problemas:
- Problemas são propostos para soluções;
- A partir de sua disciplina, cada professor junto com seus alunos fornece dados e fatos para interpretação visando à solução dos problemas propostos.
d) Abordagem mediada por dilemas reais vividos pela sociedade:
- Perguntas são feitas sobre a conveniência de determinadas decisões políticas ou programáticas;
- A partir de sua disciplina, cada professor junto com seus alunos fornece dados e fatos para a interpretação visando às discussões sobre os dilemas propostos.
e) Abordagem por área do conhecimento:
Natureza e Trabalho;
Sociedade e Trabalho;
Multiculturalismo e Trabalho;
Linguagens e Trabalho;
Ciência e Tecnologia e Trabalho;
Saúde e Trabalho;
Memória e Trabalho;
Gênero e Trabalho;
Etnicidade e Trabalho;
Éticas religiosas e Trabalho.
São muitas as possibilidades de integração, no entanto se não houver o diálogo entre as áreas do conhecimento, os atores envolvidos e as experiências em curso, o planejamento e acompanhamento dessas atividades, ou seja, a criação de uma nova cultura escolar, que inclua a apropriação dos conceitos e princípios do Ensino Médio Integrado e valorização dos profissionais envolvidos, a proposta redundará num esvaziamento, que, na realidade das escolas, não se concretizará.
Assim, as propostas voltadas para o Ensino Médio, em geral, estão baseadas em metodologias mistas (SANTOMÉ, 1998), as quais são desenvolvidas em, pelo menos, dois espaços e tempos. Um voltado para as denominadas atividades integradoras e outro destinado ao aprofundamento conceitual no interior das disciplinas. É a partir daí que vamos apresentar uma possibilidade de organização curricular do Ensino Médio Integrado.
Para isto, é necessário que tanto as disciplinas quanto as atividades integradoras sejam construídas do ponto de vista da seleção dos conteúdos a partir de inter-relações entre os eixos norteadores do Ensino Integrado: Trabalho, ciência, tecnologia e cultura.
Entretanto para que isto ocorra, sem cair novamente no reducionismo curricular, é necessário que o corpo técnico e docente se aproprie da concepção e dos princípios do Ensino Integrado, com vistas à organização efetiva e significativa dos tempos e espaços de atuação, para garantir que o planejamento possa ser materializado, acompanhado e avaliado.
Assim sendo, a cada período letivo a(s) atividade(s) integradora(s) poderá (rão) ser planejada(s) a partir das relações entre situações reais existentes nas práticas sociais concretas (ou simulações) e os conteúdos das disciplinas, tendo como fio condutor as conexões entre o trabalho e as demais dimensões acima evidenciadas (SANTOMÉ, 1988).


A ARTICULAÇÃO TEORIA E PRÁTICA NAS POLÍTICAS DE FORMAÇÃO
DOS PROFESSORES PARA A EDUCAÇÃO BÁSICA: a competência como
ferramenta para a formação do professor prático
Ronaldo Marcos de Lima Araujo(1)
RESUMO
Produto de pesquisa bibliográfica, este artigo objetiva revelar o conteúdo com que "a noção de competência "(2)se apresenta nos documentos que sustentam e normatizam a recente reforma das políticas de formação de professores para a educação básica (3) implementada no Brasil a partir da década de 90. Nele verifica-se que tal noção tem sido colocada como ferramenta capaz de promover a articulação entre teoria e prática e que,
partindo de um referencial neopragmatista, esta junção pressupõe o privilégio da prática em detrimento da teoria, o que coloca grandes limites a processos de qualificação docente.

Este artigo, fruto de ações iniciais de pesquisa nos projetos “A Noção de competência Incorporada nas Políticas de Formação de Professores”2 e “As Mutações no Mundo do Trabalho e as Políticas de Formação do Profissional da Educação”3, tem como objeto a noção de competência que vem sendo utilizada nas políticas de formação dos professores para a educação básica. Trata, portanto, de uma forma específica de
institucionalização da noção de competência nas políticas educacionais brasileiras.

Aborda o modo como a noção de competência vem sendo compreendida enquanto ferramenta de articulação entre teoria e prática nas políticas de formação do professor de educação básica.
Utilizamos como base documental os textos Guiomar N. de Melo (Melo, 1999) e de Vera Grellet (Grellet, 1999), que subsidiaram a Comissão do Conselho Nacional de Educação na definição das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, bem como o próprio parecer CNE/CP 9/2001 – homologado (MEC, 2002), que fixa as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena.


1. A Pedagogia das Competências e as suas referências

A competência vem sendo tratada na literatura da área como a capacidade pessoal de operacionalização e de efetivação de recursos cognitivos, técnicos e relacionais diante de situações concretas (Machado, 2002). Materializa-se na capacidade real de resolução de um problema ou de uma tarefa e se evidencia no “ser capaz de”.
A noção de competência tem demonstrado força para se colocar como termo de referência, no âmbito dos sistemas de ensino, para a definição e redefinição de políticas de educação e, no âmbito das empresas, para a gestão e o tratamento de pessoal, no Brasil e internacionalmente. Esta noção, tal como ressalta Tanguy (1997), tem disputado espaço com o saber, nos sistemas de ensino, e com a qualificação, nas empresas.
A noção de competência surge enquanto referência para as políticas de gestão e de educação no mesmo movimento de substituição dos padrões de acumulação capitalista e da emergência do modelo de acumulação flexível. Apesar de não poder ser considerada como mero reflexo desta, deve-se reconhecer os vínculos entre a noção de competência e o processo de restruturação da produção.
Também se deve reconhecer o panorama no qual emerge essa noção, marcado pela hegemonia do pensamento neoliberal, pela desmobilização sindical, pela precarização das relações de emprego, pela contração dos níveis de emprego e pela oligopolização da economia.

Já abordamos em outro momento (Araujo, 2001) que as propostas e práticas pedagógicas construídas sobre a noção de competências, particularmente àquelas voltadas para a educação profissional, têm se pautado em referenciais pragmatistas, individualistas e no racionalismo. Também já verificamos que esses referenciais têm
orientado práticas formativas em outros níveis e modalidades de ensino (Araujo, 2002).
Nestas oportunidades enfatizávamos que a utilização desses referenciais impõe limites às formulações pedagógicas que se querem comprometidas com a transformação social e com a construção de um projeto coerente com as idéias de emancipação e de solidariedade social, pois instrumentalizam a conformação dos indivíduos às realidades dadas e promovem práticas individualistas e submetidas à lógica de mercado.
Partindo desses supostos é que formulamos a hipótese central que orienta a construção deste texto, de que, partindo de um referencial neopragmatista, as políticas de formação dos professores para a educação básica têm buscado na noção de competência a ferramenta capaz de promover a articulação entre teoria e prática e que tal proposta de articulação pressupõe o privilégio da prática em detrimento da teoria.

2. A institucionalização das competências nas políticas educacionais brasileiras

Apesar de ser um fenômeno internacional, existem diferentes formas de institucionalização da lógica das competências. No Brasil, em particular, essa institucionalização vem se dando, principalmente, via políticas oficiais dos Ministérios do Trabalho e Emprego, da Educação e da Saúde (Machado, 2002).
Para esta autora a institucionalização à brasileira vem traduzindo as competências com forma e conteúdo ultraliberal, pois busca coerência com a flexibilização no uso da mão-de-obra e porque coerente com desresponsabilização do Estado pelo emprego.
A respeito da forma de institucionalização do uso da noção de competência nas políticas educacionais brasileiras, a autora estabelece algumas considerações dentre as quais destacamos a de que o processo de institucionalização da lógica das competências tem buscado a refuncionalização das relações entre produção, educação e escola tendo em vista as novas demandas dos mercados ultralivres de trabalho em decorrência das flexibilizações e desregulamentações (Machado, 2002).
Além disso, observa que a institucionalização da lógica das competências traz, enquanto estratégias formativas, a flexibilização dos programas escolares, a modularização da formação e a modificação das formas, dos critérios e dos sistemas de avaliação dos estudantes e dos trabalhadores.
Observa, ainda, que o conteúdo das competências tem sido formulado diferentemente pelos ministérios do Governo federal, não tendo assim um significado único ou uma convergência.

3. A institucionalização das competências nas políticas brasileiras de formação de professores

Nos documentos que subsidiaram as diretrizes curriculares nacionais para a formação de professores parte-se de uma leitura bastante otimista do cenário nacional.
Guiomar Namo de Melo, uma das conselheiras de maior influência nas definições das diretrizes curriculares, afirma os avanços do quadro nacional, com a redemocratização do país, a exigência da globalização por recursos humanos qualificados e a ampliação do reconhecimento da importância da educação, indicando a
necessidade de inovações de gestão e de organização pedagógica (Melo, 1999).
Melo (1999) coloca a reforma das políticas de formação de professores como condição para que a reforma da educação básica atinja seus objetivos. Este, aliás, é o seu ponto de partida: a busca pela efetivação da reforma da educação básica.

Sugere, então, um novo lócus da formação de professores para que esta formação não seja “contaminada” pelo ensino superior das universidades, sendo necessário para tanto... rever ou reinventar as agências formadoras existentes que quiserem e puderem dar respostas eficazes ao desafio de preparar esses professores. Caso isso não seja possível será preciso inventar outras instituições que possam abrigar projetos pedagógicos condizentes com as necessidades qualitativas e quantitativas de formação de docentes para a educação básica (Melo, 1999:3).
Esse novo lócus, assim, deve permitir um desvio frente às resistências encontradas nas universidades de encaminhamento das ações de reforma definidas para a formação de professores e, consequentemente, para a educação básica brasileira.
Enquanto problemas específicos da formação de professores, Melo (1999) identifica algumas distorções do sistema atual, a saber:
• A divisão entre professor polivalente (que dá aulas de 1ª a 4ª séries) e o especialista (que dá aulas a partir da 5ª série).
• O “modelo disciplinarista” que divorcia a aquisição de conhecimentos e a constituição de competências.
• A desvinculação, nos cursos de formação docente, dos conteúdos, sua teoria, com a prática e que não propiciariam a articulação dos conteúdos com a utilização que dele será feita na educação básica.
Práticas de formação pautadas na noção de competência, então, são apresentadas como estratégias capazes de superar a dicotomia entre teoria e prática na formação dos professores, de promover a integração da formação de professores polivalentes e especialistas e de constituir um modelo alternativo ao “disciplinarista”.
Dessa forma a autora acredita que poderão ser formadas dezenas de milhões de professores que promoverão a necessária renovação do atual plantel docente.
 Ao definir as Diretrizes Pedagógicas da formação de professores, aponta como princípio, entre outros, a articulação entre teoria e prática.

4. A articulação entre teoria e prática nas políticas de formação de professores

A articulação entre teoria e prática tem sido buscada por todos. A forma como se entende essa articulação, no entanto, precisa ser significada para que não se cometa o erro de acreditar em uma única forma de relacionamento entre teoria e prática.

Os documentos da reforma da educação profissional revelam um modo muito específico de compreensão da articulação entre teoria e prática. Algumas das especificidades dessa compreensão podem ser assim apontadas.

a) Subordinação da teoria em relação à prática

Nos documentos da reforma da formação de professores há uma clara indicação de que a teoria deve se subordinar e se validar pela prática.
Apesar de o parecer 09/01 afirmar que a relação teoria e prática deve pressupora não prioridade de algum destes termos, observa-se a idéia de subordinação da teoria em relação à prática, entre outros momentos, quando se afirma que Todas as disciplinas que constituem o currículo de formação e não apenas as
disciplinas pedagógicas têm sua dimensão prática. É essa dimensão prática que deve estar sendo permanentemente trabalhada tanto na perspectiva da sua aplicação no mundo social e natural quanto na perspectiva da sua didática (MEC, 2002:57).
Mediada pela noção de competência, a articulação entre teoria e prática écompreendida como a contextualização dos conhecimentos especializados de tal modo que possa promover uma permanente construção de significados desses conhecimentos com referência à sua aplicação, sua pertinência em situações reais, sua relevância para a vida pessoal e social, sua validade para análise e compreensão de fatos da vida real (Melo, 1999:9).
Os conhecimentos vinculam-se, portanto, à sua utilidade para a análise e compreensão dos fatos e os significantes da teoria, ou seja, os referenciais de sua validação, seriam definidos pela sua “pertinência” a uma situação real e aos fatos da vida real.
Considerando que o termo pertinência significa aquilo que é relativo, referente, respeitante, pertencente, adequado e oportuno (Ferreira, 1999; Barbosa, 1999), pode-se inferir o caráter de subordinação dos saberes à prática, quando se coloca a validação da teoria pela sua “pertinência” em relação aos fatos da vida real.
Entende-se assim que quando se diz que a teoria é pertinente a uma situação real e aos fatos da vida real, deve-se compreender que o conhecimento se subordina a uma situação real e que há, portanto, uma relação de subordinação, de respeito, de relativização, de pertencimento da teoria pela atividade prática.
Melo (1999) indica, fazendo uso da estratégia utilitarista de validação da teoria pela sua utilidade prática, que a articulação entre teoria e prática deve implicar, para a formação docente, em que cada conteúdo  preendido pelo futuro professor no seu curso de formação profissional precisa ser permanentemente relacionado com o ensino desse mesmo conteúdo na educação básica.
Nos documentos da reforma, defende-se que a matriz curricular da formação de professores...
deve permitir o exercício permanente de aprofundar conhecimentos disciplinares e ao mesmo tempo indagar a esses conhecimentos sua relevância e pertinência para compreender, planejar, executar, avaliar situações de ensino e aprendizagem. Essa indagação só pode ser feita de uma perspectiva interdisciplinar (MEC, 2002:54).
É Grellet (1999), no entanto, quem deixa mais clara a subordinação da teoria em relação à prática, utilizando-se, para isso, da noção de competência. Esta autora resgata Perrenoud para afirmar que a prática é a pedra de toque das competências (1999:11).
Esta autora defende o professor como um profissional prático e afirma que os conhecimentos têm que ser aprendidos pelo futuro professor de tal modo que possa integrá-los e mobilizá-los para construir as competências necessárias ao ato de ensinar (Grellet, 1999:02).
Apoiando-se em Donald Schön, defende o profissional prático que deve ser desenvolvido a partir dos seguintes conceitos vinculados a ação:
(a) conhecimento na ação: conhecimento que o profissional demonstra na execução da ação, é dinâmico e resulta na reformulação da própria ação; (b) reflexão na ação ocorre na durante a prática, quando há um diálogo com a situação e, com breves instantes de distanciamento, reformula-se o curso da ação; (c) reflexão sobre a ação, retrospectiva, reconstrutora da ação para analisá-la, presente nos diários de bordo, histórias de vida, e nos diários de classe, recurso freqüentemente utilizados nos dias de hoje para a formação de
professores; (d) reflexão sobre a reflexão na ação, processo meta-cognitivo que transcende os dois anteriores e leva o profissional a progredir e a construir a sua forma pessoal de conhecer (Grellet, 1999:04).
Ou seja, a autora em tela defende que, no processo de formação do professor prático, o conhecimento e a reflexão devem ser mobilizados em função da ação.
Acredita que por trás da prática de bons professores existem competências que não se explicam pela aplicação de princípios científicos, mas do “conhecimento contextualizado”.

Para esta autora, apoiada em Schön, ensinar é aproveitar imprevistos, é agir com rapidez e com urgência, é, portanto, ser capaz de responder as necessidades que a realidade imediata colocar ao docente.
Os documentos da reforma apresentam a idéia de simetria invertida como um princípio orientador da formação de professores e é Grellet (1999) quem nos informa que a idéia de simetria invertida implica numa relação teoria e prática: primeiro na significação do conhecimento, segundo na aplicação do conhecimento na prática.

b) A vinculação da teoria à prática se baliza no imediato

Outra característica do tipo de articulação entre teoria e prática que os documentos da reforma revelam é que a validação da teoria pelo contexto considera, fundamentalmente, a realidade imediata, não  perspectivando, portanto, a formação de professores na construção da realidade futura.
Isso pode ser constado quando, por exemplo, Melo (1999) indica que a articulação entre teoria e prática é negativa quando se volta para a produção de conhecimentos na área de conhecimento do professor e que esta articulação é positiva quando busca refletir sobre a atividade de ensinar.
Quando define o papel da pesquisa, a autora deixa ainda mais clara a sua posição de vincular a teoria a uma prática imediata. Afirma a autora que o papel da pesquisa deve ser o de contribuir para o ajuste na ação do profissional, que não deve ter o caráter (e nem o rigor) de uma pesquisa científica porque a prática docente não tem a exatidão do experimento científico e é por esta razão que seu “ethos” não é o do
investigador acadêmico (Melo, 1999:10).
Nesta idéia não só há uma negação do saber científico e da possibilidade de uma ciência da prática docente, como consta uma clara defesa da validação do saber docente pela realidade experiencial do professor. Por esta lógica, válido é aquilo que se mostrar útil, necessário ao uso prático imediato do professor. Valida-se a pesquisa instrumental que resulte em melhorias práticas imediatas e estreita-se as possibilidades de pesquisa do professor vinculando-as às necessidades colocadas pelo emergente.
A valorização da pesquisa instrumental se coloca de forma mais evidente ainda no parecer 09/01, onde se lê que...
Teorias são construídas sobre pesquisas. Certamente é necessário valorizar esta pesquisa sistemática que constitui o fundamento da construção teórica. Dessa forma a familiaridade com a teoria só pode se dar por meio do conhecimento das pesquisas que lhe dão sustentação. De modo semelhante, a atuação prática possui uma dimensão investigativa e constitui uma forma não de simples reprodução mas de criação ou, pelo menos, de recriação do conhecimento. A participação na construção de um projeto pedagógico institucional, a
elaboração de um programa de curso e de planos de aula envolvem pesquisa bibliográfica, seleção de material pedagógico etc. que implicam uma atividade investigativa que precisa ser valorizada (MEC, 2002:24 – grifo nosso).
A atividade de pesquisa a ser valorizada na formação do professor, nesta perspectiva, deve se restringir aos tipos de investigação que podem facilitar a organização do seu trabalho pedagógico, negando a necessidade da pesquisa científica alicerçada sobre a idéia de construção de um conhecimento novo e do saber científico.
Ao mesmo tempo em que valoriza os saberes tácitos, construídos na e pela experiência cotidiana dos indivíduos, nos documentos da reforma da formação de professores há uma sistemática crítica a estrutura disciplinar dos saberes que pode revelar, mesmo, a sua negação. Defende-se que passe a caracterizar o trabalho docente não o saber disciplinar, mas o saber associado a competências de gerência do ensino e
da aprendizagem (Melo, 1999).
A desvalorização da teoria pode ser verificada ainda quando Grellet (1999) afirma que a formação docente a ser buscada se realizará mais pela constituição de competências, habilidades e disposições de condutas do que pela quantidade de informação. Essa, portanto, pode ser apontada como outra marca da relação entre teoria e prática nas políticas de formação de professores: a desvalorização do saber científico.
A parecer não expressa em nenhum momento a necessidade de o professor produzir conhecimentos. O que se diz é que cabe ao professor utilizar-se dos conhecimentos para manter-se atualizado em relação aos conteúdos de ensino e ao conhecimento pedagógico (MEC, 2002:44).
Melo (1999:10) indica a necessidade que a prática esteja presente desde o primeiro dia de aula do curso superior de formação docente, em tempo real, por meio da presença orientada em escolas de educação infantil e ensino fundamental e médio, ou de forma mediada pela utilização de vídeos, estudos de caso, depoimentos e quaisquer outros recursos de educação à distância que permitam a reconstrução ou simulações de situação real.

c) A relação entre teoria e prática é marcada pelo utilitarismo

O utilitarismo(4) presente na concepção de competência com a qual trabalha os documentos da reforma das políticas de formação de professores fica evidente no momento em que se explicita o lócus da formação dos professores pretendido. Defendese que a formação dos professores deve ser feita na instituição que conseguir construir ao longo do curso o perfil profissional docente que o país necessita (Melo, 1999:12).
Assim, deixa-se livre para que qualquer instituição ou “arranjo institucional” possa se ocupar da formação de professores.
Ao considerar toda a diversidade institucional benvinda, também se deixa claro o caráter utilitário da proposta.
A diversificação da institucionalização e da estruturação da formação de professores é colocada como estratégia de seleção natural das instituições privadas e públicas que têm vocação e disposição para formar professores com seriedade e qualidade (Melo, 1999:16). O novo lócus da formação de professores é colocado como necessário também para a superação das resistências à formação do professor prático.
Os conteúdos dos processos formativos, nesta perspectiva, são encarados, não como verdades que devem ser conhecidas pelos professores de modo a lhes permitir conhecer as bases científicas dos processos de trabalho aos quais estão vinculados, mas como informações úteis para a resolução de problemas. Os conteúdos deixam de ter, assim, a função técnica-política de instrumentalizar os docentes para uma efetiva
participação social e são organizados de modo a possibilitar, apenas, o ajustamento dos professores aos seus ambientes de trabalho.
Assim, as teorias são consideradas válidas na medida de sua utilidade e colocase a avaliação da prática como momento privilegiado para uma visão crítica da teoria e da estrutura curricular (MEC, 2002: 23). Desconsidera-se, portanto, a importância do que é essencial aos conteúdos, o que lhes é próprio e lhes dá lógica e coerência, em benefício daquilo que se apresenta como imediatamente útil.
A competência, compreendida como prática de trabalho docente, é apresentada então como critério mais adequado de definição da carreira e da remuneração dos professores, em oposição aos atuais critérios de classificação da carreira docente com base nos títulos e no tempo de serviço, pois a competência se verifica no “ser capaz de” e nos produtos da atividade, enquanto os antigos critérios se baseiam no saber
formalizado e comprovado mediante os títulos acadêmicos.

Considerações: por uma nova apropriação das capacidades humanas e de seu desenvolvimento
Apesar de os dados da pesquisa que fundamentam este artigo serem ainda parciais, algumas inferências são possíveis.
A principal inferência é a de que a subordinação da teoria em relação à prática, o imediatismo e o utilitarismo são marcas da compreensão acerca da articulação entre teoria e prática, pautada na noção de competência, que vem orientando as políticas de formação de professores nos documentos da reforma. Também a desvalorização do conhecimento científico pode ser apontada como outra característica da forma em tela
de compreensão da articulação entre teoria e prática.
Essas características evidenciam uma continuidade com as diferentes formas de incorporação da noção de competência nas políticas educacionais brasileiras já anunciadas anteriormente: a busca da refuncionalização das relações entre produção, educação e escola tem em vista as novas demandas dos mercados ultralivres de trabalho em decorrência das flexibilizações e desregulamentações (Machado, 2002:12).
Outra regularidade em relação às diferentes formas de institucionalização da noção de competências nas políticas educacionais brasileiras é sua perspectiva pragmatista. Utilizando-se de diferentes recursos discursivos, coloca-se o saber e a teoria a serviço da realidade imediata, sob os discursos do saber “contextualizado”,
“validado” e “relacionado”, busca-se formar profissionais docentes capazes de responder às solicitações do mercado de trabalho e às demandas da realidade imediata.
Sobre a primeira das características apresentadas, a subordinação da teoria em relação à prática, é Candau & Lelis (1995) que nos ajudam a significá-la. Falando da relação entre teoria e prática na formação do educador, estas autoras verificam que uma visão dicotômica, de base positivista-tecnológica, se caracteriza pela separação dos pólos sem oposição, onde se estabelece uma relação mecânica e autoritária de mando e
obediência de um termo em relação ao outro, desvinculando o saber do fazer. Estas autoras afirmam que uma visão de unidade destes termos pressupõe a distinção entre teoria e prática no seio de uma unidade indissolúvel, numa relação de autonomia e dependência de um termo em relação ao outro, de tal modo que a prática seja o ponto de chegada e partida da teoria e esta seja revigorada pela prática educativa. Nesta
perspectiva, o currículo ganha a dimensão teórico-prática.

Quanto ao vínculo da formação com objetivos imediatos e não vinculados a utopias distantes é preciso considerar primeiro que o vínculo dos processos formativos com a realidade é necessário para tornar relevante a formação, ainda mais em se tratando de formação de profissionais, mas este vínculo não pode se prender ao imediato, deve ter um aspecto social, como diz Pistrak (1981:38):
O trabalho na escola, enquanto base da educação, deve estar ligado ao trabalho social, à produção real, a uma atividade concreta socialmente útil, sem o que perderia seu valor essencial, seu aspecto social, reduzindo-se, de um lado, à aquisição de algumas normas técnicas, e, de outro a procedimentos
metodológicos capazes de ilustrar este ou aquele detalhe de um curso sistemático. Assim o trabalho se tornaria anêmico, perderia sua base ideológica.
Outra consideração que podemos tecer a esse respeito é a de que a educação não pode ser um fim em si mesma. É necessário, como diz Pistrak (1981) haver uma teoria social que direcione as ações formativas. Sem uma teoria de pedagogia social, nossa prática levará a uma acrobacia sem finalidade social e utilizada para resolver os problemas pedagógicos na base das inspirações do momento, caso a caso, e não na
base de concepções sociais bem determinadas (Pistrak, 1981:29). A prática não pode, assim, se perder no imediatismo, ela requer uma teleologia que a direcione.
Deve-se considerar ainda que, mesmo que se negue, toda prática educativa tem uma teleologia contribuindo para uma ou outra finalidade, sendo, pois enganosa a idéia pragmática de educação desvinculada de uma utopia distante. Ao não explicitar o seu “compromisso social”, no entanto, os documentos da reforma obscurecem o seu papel ideológico e reforçam as atuais relações de produção hegemônicas.
Sobre o utilitarismo como marca da compreensão entre teoria e prática nas políticas de formação de professores é em Suchodolski (1966) que vamos buscar apoio.
Este autor critica o utilitarismo como teoria errônea da motivação do comportamento humano. Para ele, destacando a função burguesa da filosofia utilitarista, esta concepção das motivações humanas conduz à conclusão de que a principal força motriz do comportamento humano é sua tendência a conseguir o proveito ou a ganância.
Este autor resgata Marx para evidenciar que a concepção utilitarista corresponde principalmente aos interesses burgueses, que têm na utilidade (no proveito e na exploração) os motivos de sua atuação de classe, buscando convertê-los em modo explicativo da atuação de todos os homens.
Marx analisa a influência prejudicial destas teorias utilitaristas no campo do ensino. Assinala que estas teorias registram e se apresentam como imagem ideal de toda a relação do homem consigo mesmo, com sua própria atuação e com outros homens (...) a filosofia utilitarista encobre sua origem de natureza classista (...) a filosofia utilitarista considera suas próprias origens de classe como realização social dos princípios descobertos por ela e das leis do ser (...) Esta ideologia se mostra reacionária a partir do momento em que quer fazer da prática de exploração burguesa uma categoria única perdurável da atividade humana e das relações entre os homens (...) uma ideologia deste tipo não só limita o desenvolvimento do homem ao mundo burguês, mas também representa erroneamente a atividade do homem nas relações da mesma sociedade burguesa (Suchodolski, 1966:206).

Ao evidenciar a sua perspectiva utilitarista da atividade, negando o caráter ontológico da mesma, as políticas de formação de professores demonstram seu compromisso com as relações sociais estabelecidas criando obstáculos à elevação da compreensão dos docentes sobre a realidade que requer, entre outras coisas, a
vinculação da formação com a realidade mediada por finalidades sociais, conduzindo a mudanças nessa realidade.
Acerca da desvalorização da ciência, deve-se inicialmente reconhecer que a teoria, a ciência, não tem um valor per se, e que deve ter uma utilidade prática, mas deve-se considerar também o seu valor social. Para Vázquez (1968), resgatando Marx quando este falava da utilidade prática da ciência, a utilidade desta deve ter um caráter social, deve ser útil para, com base nela, o homem pode transformar a realidade.
Tanto para o marxismo quanto para o pragmatismo a prática é o critério da verdade, mas se para o pragmatismo a prática é a...
... ação subjetiva do indivíduo destinada a satisfazer seus interesses; no outro (marxismo), é a ação material, objetiva, transformadora, que corresponde a interesses sociais e que, considerada do ponto-de-vista histórico-social, não é apenas produção de uma realidade material, mas sim criação e desenvolvimento incessantes da realidade humana (...) O critério de verdade para o pragmatismo é, por conseguinte, o êxito, a eficácia da ação prática do homem entendida como prática individual. Para o marxismo, é a prática, mas concebida como atividade material, transformadora e social (Vázquez, 1968:213).

A contraposição, portanto, entre teoria e prática se manifesta no pragmatismo por uma redução do prático ao utilitário, e consumada esta, pela dissolução do teórico (do verdadeiro) no útil (Vázquez, 1968:214).

Referenciada na matriz neopragmatista, a formação de professores coloca grandes limites aos processos de formação de professores. Não se poder defender, enquanto política de estado, a formação de pessoas capazes apenas de responder problemas e de fazer frente às tarefas que a realidade impõe. Há que se pugnar pela formação de profissionais capazes de responder, mas também de formular questões e, assim, desenvolver-se e humanizar-se. Quem só responde e resolve o que está colocado, prende-se ao presente, conformando-se com o mesmo, e abre mão das utopias.
Queremos, pois, não um aluno preso ao presente, pois assim estariam reforçando o conservadorismo e a tradição. Há que se referenciar no futuro a formação de sujeitos de modo a validar a construção e a renovação de projetos e utopias e instrumentalizar o progresso e a construção de uma sociedade solidária e justa.


NOTA
1 Profº Adjunto do Centro de Educação da UFPA. Doutor em Educação pela UFMG. E-mail:
rlima@ufpa.br.
2 Este projeto conta com apoio da CAPES/Procad.
3 Financiado com recursos do CNPq.4 O utilitarismo é a teoria empírica segundo a qual o valor ou correção das ações depende das
conseqüências que trazem consigo, do bem ou mal que produzem. Em suma, todas as ações devem ser
medidas pelo bem maior para o maior número. (Goldim, 2001:01)
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