13 de outubro de 2010

MINUTA DE RESOLUÇÃO DE DCN PARA O ENSINO MÉDIO

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO
DOCUMENTO SUJEITO A REVISÃO
Minuta de Resolução de Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio(O presente documento já foi objeto de apreciação de especialistas de Ensino Médio, reunidos no CNE, no dia 17 de setembro de 2010)

RESOLUÇÃO CEB/CNE Nº , de de 2010
Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio
O Presidente da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, em conformidade com o disposto no art. 9º, § 1º, alínea "c", da Lei 9.131, de 25 de novembro de 1995, nos artigos 22, 23, 24, 25, 26, 26-A, 27, 35, 36,36-A, 36-B e 36-C da Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, e tendo em vista o Parecer CEB/CNE, homologado pelo Senhor Ministro da Educação em de de 2010 e que a esta se integra,
RESOLVE:
Art. 1º. A presente Resolução fixa as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio a serem observadas na organização curricular dos sistemas de ensino e de suas unidades escolares.
Art. 2º. As Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio articulam-se com as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica e reúnem princípios, fundamentos e procedimentos, definidos pelo Conselho Nacional de Educação, para orientar as políticas públicas educacionais na elaboração, planejamento, implementação e avaliação das propostas curriculares das escolas.
Parágrafo único. As Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio aplicam-se a todas as modalidades de Ensino Médio previstas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional em vigor, complementadas, quando necessário, por Diretrizes próprias das modalidades.
Art. 3º. O Ensino Médio traduz-se como um direito público subjetivo de cada indivíduo e como dever do Estado na sua oferta gratuita a todos. As instituições escolares que ministram esta etapa da Educação Básica deverão estruturar seus projetos pedagógicos considerando as finalidades previstas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a saber:
I. a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos;
II. a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores;
III. o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o
desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico;
IV. a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina.
Art. 4º. O projeto político-pedagógico da Escola deve traduzir a proposta educativa construída com participação efetiva da comunidade escolar no exercício de sua autonomia tendo como referência as leis educacionais, as Diretrizes Curriculares Nacionais, normas complementares dos sistemas de ensino e a realidade local.
§ 1º. Cabe a cada escola a elaboração do seu projeto político-pedagógico, definido a partir de um amplo e aprofundado processo de diagnóstico, análise e proposição de alternativas para a formação integral e acesso aos conhecimentos e saberes necessários ao desenvolvimento individual, exercício da cidadania, vida pessoal, solidariedade, convivência e preparação para o mundo do trabalho.
§ 2º. A organização curricular do Projeto Político-Pedagógico deverá considerar os professores e os estudantes como sujeitos históricos e de direitos, na sua diversidade e singularidade e participantes ativos no planejamento curricular da escola. Portanto, suas indicações, expectativas e percepções devem ser objeto de discussão e de aprimoramento quando da organização do trabalho escolar e pedagógico, de modo a estimular sua participação no processo educacional.
Art. 5º. O currículo é entendido, nesta Resolução, como a proposta de ação educativa constituída pela seleção os conhecimentos historicamente acumulados pela sociedade, expressas por práticas escolares que se desdobram em torno do conhecimento, permeadas pelas relações sociais, articulando vivências e saberes dos estudantes e contribuindo para o desenvolvimento de suas identidades e condições cognitivas.
§ 1º. As Diretrizes Curriculares, orientações e propostas para a organização curricular, elaboradas nas diversas instâncias, ganham efetividade quando apropriadas por meio de práticas sócio-educativas nas unidades escolares, constituindo na sua experiência o currículo real.
§ 2º. Os conhecimentos escolares são aqueles produzidos pelos sujeitos em seu processo histórico, valorizados e selecionados pela sociedade e que as Escolas e os profissionais da educação organizam e transformam a fim de que possam ser ensinados e aprendidos, tornando-se elementos do desenvolvimento cognitivo do estudante, bem como sua formação ética, estética e política.
Art. 6o. O ensino médio em todas as suas formas de oferta, nos termos da Lei, baseia-se nos seguintes pressupostos:
I. Formação integral do educando
V. Trabalho e a pesquisa como princípios educativos
VI. Indissociabilidade entre educação e prática social, considerando-se a historicidade dos
conhecimentos e dos sujeitos do processo educativo
VII. Integração entre educação, trabalho, ciência, tecnologia e cultura como base da
proposta e do desenvolvimento curricular
VIII. Integração de conhecimentos gerais e, quando for o caso, técnico-profissionais
realizada na perspectiva da interdisciplinaridade e na contextualização
IX. Indissociabilidade entre teoria e prática no processo de ensino-aprendizagem
X. Reconhecimento das diversidades dos sujeitos, das formas de produção, dos processos
de trabalho e das culturas a eles subjacentes.
XI. Compreensão do necessário equilíbrio nas relações do ser humano com a natureza e
respeito na convivência entre os indivíduos.
Art. 7º. O Ensino Médio, etapa final da educação básica deve assegurar sua função formativa
para todos os estudantes.
§1º. O Ensino Médio, exceto a modalidade de EJA, ter duração mínima de 3 (três) anos.
§2º. A carga horária mínima anual do Ensino Médio, exceto a modalidade de EJA,
será de 800 horas distribuídas em pelo menos 200 (duzentos) dias de efetivo trabalho escolar.
§3º. A formação geral no Ensino Médio terá carga horária mínima de 2400 horas.
§4º. O ensino médio, atendida a formação geral, incluindo a preparação básica para o trabalho, poderá preparar para o exercício de profissões técnicas, por integração com a educação profissional técnica de nível médio. A carga horária mínima do ensino médio integrado a Educação Profissional Técnica de nível médio será de 3.200 horas.
Art. 8º. A organização curricular do Ensino Médio tem uma Base Nacional Comum e uma Parte Diversificada que constituem um todo integrado de modo a garantir conhecimentos e saberes comuns necessários a todos os estudantes e uma formação que considere as características locais e especificidades regionais.
Parágrafo único. Os conteúdos curriculares têm origem nos conhecimentos científicos, no desenvolvimento das linguagens, no mundo do trabalho, na tecnologia, na produção artística, nas atividades desportivas e culturais e ainda incorporam saberes que advêm das práticas e movimentos sociais, da cultura escolar envolvendo a experiência docente e o cotidiano dos estudantes.
Art. 9. O currículo do Ensino Médio terá sua Base Nacional Comum organizada em áreas de
conhecimento, a saber:
I. Linguagens, Códigos e suas Tecnologias;
XII. Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias;
XIII. Ciências Humanas e suas Tecnologias.
Parágrafo único. A Base Nacional Comum do currículo para o ensino médio deverá contemplar as três áreas do conhecimento, com tratamento metodológico que evidencie a interdisciplinaridade e a contextualização.
Art.10. No currículo escolar do ensino médio:
as definições doutrinárias sobre os fundamentos axiológicos e os princípios pedagógicos que integram as DCNEM aplicar-se-ão tanto na Base Nacional Comum quanto na Parte Diversificada;
I. a Parte Diversificada deverá ser integrada à Base Nacional Comum, por meio da contextualização e da complementação, diversificação, enriquecimento, desdobramento, entre outras formas de integração do conhecimento;
II. além da carga mínima de 2.400 horas, as escolas terão, em suas propostas pedagógicas, liberdade de organização curricular, independentemente de distinção entre Base Nacional Comum e Parte Diversificada;
III. a Base Nacional comum deverá compreender, pelo menos, 1800 (mil e oitocentas) horas na organização curricular do ensino médio.
Art.11. Conforme o disposto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e demais legislações complementares os componentes curriculares do ensino médio serão organizados incluindo obrigatoriamente:
a) o estudo da língua portuguesa e da matemática, o conhecimento do mundo físico e natural e
da realidade social e política, especialmente do Brasil;
b) o ensino da arte, especialmente em suas expressões regionais, de forma a promover o
desenvolvimento cultural dos alunos;
c) a educação física, integrada à proposta pedagógica da escola, sendo sua prática facultativa ao
aluno nos casos previstos em Lei;
d) o ensino da História do Brasil, que levará em conta as contribuições das diferentes culturas e
etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e
européia;
e) uma língua estrangeira moderna escolhida pela comunidade escolar, e uma segunda, em
caráter optativo, dentro das disponibilidades da instituição;
f) oferta da língua espanhola;
g) a música como conteúdo obrigatório, mas não exclusivo, do componente curricular;
h) o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena;
i) a educação tecnológica básica, a compreensão do significado da ciência, das letras e das artes;
o processo histórico de transformação da sociedade e da cultura; a língua portuguesa como
instrumento de comunicação, acesso ao conhecimento e exercício da cidadania.
j) a Filosofia e a Sociologia em todas as séries do ensino médio.
k) a Educação Ambiental como uma prática educativa integrada e presente, de forma articulada
na organização curricular.
l) conteúdo que trata das crianças e dos adolescentes tendo como diretriz o Estatuto da Criança e
do Adolescente.
m) conteúdos voltados ao processo de envelhecimento, ao respeito e à valorização do idoso.
Art.12. Os sistemas de ensino e as escolas, de acordo com a legislação e normatização nacional e estadual e na busca da melhor adequação possível às necessidades dos estudantes e do meio social:
I. desenvolverão, mediante a institucionalização de mecanismos de participação da comunidade,
alternativas de organização institucional que possibilitem:
a) identidade própria das instituições de ensino de adolescentes, jovens e adultos, respeitadas as
suas condições e necessidades de espaço e tempo para a aprendizagem;
b) uso das várias alternativas pedagógicas de organização, inclusive espaciais e temporais;
c) articulações e parcerias entre instituições públicas e privadas, contemplando a preparação
geral para o trabalho.
II. fomentarão a diversificação de programas ou formas de estudo disponíveis, estimulando alternativas, a partir de uma base comum, de acordo com as características do alunado e as demandas do meio social, admitidas propostas que privilegiem as opções feitas pelos próprios alunos, sempre que viáveis técnica e financeiramente;
III. instituirão sistemas de avaliação e/ou utilizarão os sistemas de avaliação operados pelo Ministério da Educação a fim de acompanhar os resultados, tendo como referência os conhecimentos e saberes a serem alcançados, a legislação do ensino, estas diretrizes e as propostas pedagógicas das escolas;
IV. criarão os mecanismos necessários ao fomento e fortalecimento da capacidade de formular e
executar propostas pedagógicas escolares características do exercício da autonomia;
V. criarão mecanismos que garantam liberdade, autonomia e responsabilidade das instituições escolares na formulação de sua proposta pedagógica, e evitem que as instâncias centrais dos sistemas de ensino burocratizem e ritualizem o que, no espírito da lei, deve ser expressão de iniciativa das escolas, com a participação de todos os elementos diretamente interessados, em especial dos professores.
Art.13. Na observância da Interdisciplinaridade, as escolas deverão considerar que:
I. a Interdisciplinaridade, nas suas mais variadas formas de efetivação, partirá do princípio de
que todo conhecimento tem seu objeto de estudo, ao mesmo tempo em que mantém um
diálogo permanente com outros conhecimentos;
II. o ensino deve ir além da descrição e possibilitar aos estudantes o desenvolvimento da
capacidade de analisar, explicar, prever e intervir. Tais objetivos podem ser alcançados com mais sucesso se as disciplinas, integradas em áreas de conhecimento, puderem contribuir, cada uma com sua especificidade, para o estudo de problemas concretos e para o desenvolvimento de projetos de investigação e/ou de ação;
III. as disciplinas escolares são recortes das áreas de conhecimentos a que se articulam e expressam um grau de arbitrariedade na sua estruturação e não esgotam isoladamente a realidade dos fatos físicos e sociais, devendo buscar interações com outras disciplinas e áreas do conhecimento de forma que permitam aos estudantes a compreensão mais ampla da realidade;
IV. as disciplinas devem ser didaticamente solidárias para atingir os objetivos propostos para o
processo de ensino e de aprendizagem, de modo que disciplinas diferentes estimulem capacidades comuns e cada disciplina contribua para a constituição de diferentes capacidades, sendo indispensável buscar a complementaridade entre estes componentes a fim de possibilitar aos alunos um desenvolvimento intelectual, social e afetivo mais completo e integrado;
V. a característica do ensino escolar, tal como indicada no inciso anterior, amplia significativamente a responsabilidade da escola para a constituição de identidades que integram conhecimentos, saberes e valores que permitam o exercício pleno da cidadania e a inserção flexível no mundo do trabalho.
Art. 14. Na observância da Contextualização, as escolas terão presente que:
I. na situação de ensino e aprendizagem, o conhecimento é transposto da situação em que foi
criado, inventado ou produzido e, no sentido de orientar esta didatização transposição/estruturação didática deve ser relacionado com a prática ou com a experiência do aluno a fim de adquirir significado;
II. observar a relação entre o contexto e a história em que o conhecimento se cria e viabilizar
vivências que permitam a recriação da situação de construção do conhecimento ;
III. a relação entre teoria e prática requer a concretização dos conteúdos curriculares em situações
mais próximas e familiares do estudante, nas quais se incluem as do trabalho e do exercício da
cidadania;
IV. a aplicação de conhecimentos constituídos na escola às situações da vida cotidiana e da experiência espontânea permite seu entendimento, crítica e revisão.
Art.15. O projeto político-pedagógico das escolas de ensino médio deve considerar:
I. atividades integradoras de iniciação científica, artística, cultural e no campo social;
II. problematização como instrumento de incentivo à pesquisa, à curiosidade pelo inusitado e ao
desenvolvimento do espírito inventivo;
III. a aprendizagem como processo de apropriação dos conhecimentos elaborados superando a
aprendizagem limitada à memorização;
IV. valorização da leitura e da produção escrita em todos os campos do saber;
V. o comportamento ético, como ponto de partida para o reconhecimento dos deveres e direitos
da cidadania, e para a prática de um humanismo contemporâneo expresso pelo
reconhecimento, respeito e acolhimento da identidade do outro e pela incorporação da
solidariedade;
VI. articulação teoria e prática, vinculando o trabalho intelectual à atividades práticas ou
experimentais;
VII. a introdução de novas mídias e tecnologias, como processo de dinamização dos ambientes de
aprendizagem;
VIII. capacidade de aprender permanente, desenvolvendo autonomia dos estudantes;
IX. atividades sociais que estimulem o convívio humano e interativo no mundo dos jovens;
X. integração com o mundo do trabalho por meio de estágios direcionados para os estudantes do
Ensino Médio conforme legislação específica;
XI. acompanhamento da vida escolar dos estudantes, promovendo o diagnóstico preliminar, o
acompanhamento do desempenho, a análise de resultados e a comunicação com a família;
XII. atividades complementares e de superação das dificuldades de aprendizagem, como meio de
ampliação das alternativas para que o aluno tenha sucesso em seus estudos.
XIII. avaliação da aprendizagem como processo formativo e permanente de identificação de
conhecimentos e saberes construídos pelos estudantes;
XIV. o reconhecimento das diferentes facetas da exclusão na sociedade brasileira;
XV. temáticas que valorizam os direitos humanos e contribuam para o enfrentamento do
preconceito, da discriminação e da violência;
XVI. a análise e reflexão crítica da realidade brasileira, de sua organização social e produtiva na
relação de complementaridade entre espaços urbanos e rurais;
XVII. estudo e desenvolvimento de atividades socioambientais;
XVIII. práticas desportivas e de expressão corporal, que contribuam para a saúde, a sociabilidade e a
cooperação;
XIX. participação social dos jovens, como agentes de transformação de suas escolas e de suas
comunidades.
Art.16. Tendo em vista a implementação destas diretrizes, cabe aos sistemas de ensino
prover:
§1º. os recursos necessários à ampliação dos tempos e espaços dedicados ao
trabalho educativo nas escolas;
§2º. Aquisição, produção e/ou distribuição de materiais didáticos e escolares
adequados;
§3º. professores para o desenvolvimento do Currículo Escolar e a formação
continuada dos professores e demais profissionais da escola;
§4º. o acompanhamento e a avaliação dos programas e ações educativas nas
respectivas redes e escolas e o suprimento das necessidades detectadas.
Art.17. Cabe, respectivamente, aos órgãos normativos e executivos dos sistemas de ensino o
estabelecimento de normas complementares e políticas educacionais para execução e
cumprimento das disposições destas diretrizes, considerando as peculiaridades regionais ou
locais.
Parágrafo único. Os órgãos normativos dos sistemas de ensino deverão regulamentar o
aproveitamento de estudos realizados e de conhecimentos constituídos tanto na experiência
escolar como extra-escolar.
Art.18 Cabe ao Ministério da Educação elaborar orientações e oferecer outros subsídios para a
implementação das diretrizes, bem como articular as matrizes de referência das avaliações de
desempenho e exames nacionais com os conteúdos da Base Nacional Comum do Ensino
Médio.
Art.19 Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação e revoga as disposições em
contrário.
Aspectos para o debate
1) Porque não utilizar as Competências no texto das Diretrizes Curriculares
Nacionais do Ensino Médio?
2) O que significa definir formas diferenciadas da organização curricular do
Ensino Médio a partir da formação geral comum a todos os estudantes?
Ex: carga horária ampliada, a partir dos seus eixos constituintes (trabalho, a
ciência, a tecnologia e a cultura), nas seguintes formas:
I- Ensino Médio integrado a educação profissional técnica de nível médio;
II- Ensino Médio com ampliação na iniciação cientifica e tecnológica;
III- Ensino Médio com ampliação na iniciação artística e cultural.
3) Destinar-se-ão, pelo menos, 20% do total a carga horária anual ao conjunto de
programas e projetos interdisciplinares eletivos criados pela escola, previsto no
projeto pedagógico, de modo que os estudantes do Ensino Médio possam
escolher aquele programa ou projeto com que se identifiquem e que lhes
permitam melhor lidar com o conhecimento e a experiência. (Diretrizes
Curriculares Nacionais Gerais da educação básica)
4) Análise da Matemática com área de conhecimento na organização curricular
do ensino médio
5) Nomenclatura – modalidades, formas de oferta, forma de organização do
ensino médio

GLOBALIZAÇÃO E CRISE DO EMPREGO:

Globalização e Crise do Emprego: Mistificações e Perspectivas da Formação Técnico-Profissional

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* Gaudêncio Frigotto. Globalização e crise do emprego: mistificações e perspectivas da formação técnico-profissional. Analisa a formação técnico-profissional num contexto de final de século marcado por transformações contraditórias. A disputa pela organização e projeto político-pedagógico da formação técnico-profissional no Brasil nos anos 90 resulta de um embate que confronta um projeto societário que se assenta no ajuste à nova (des)ordem mundial e outro que busca viabilizar uma alternativa autônoma e sustentável de desenvolvimento. No primeiro caso, a formação profissional se desenvolve numa perspectiva pragmática vinculada à ideologia da empregabilidade. No segundo caso, articula-se à educação básica associada à perspectiva da formação de sujeitos e protagonistas de uma cidadania ativa.
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O debate sobre a formação técnico-profissional tem sido intenso e controverso desde os anos 30. A criação dos Sistemas Nacionais de Formação Profissional e do Sistema de Escolas Técnicas Federais, nos anos 40, são de certa forma, resultado desse debate. Tratava-se de um contexto de busca de afirmação de um país que tem como telos a industrialização.1 Quarenta anos depois, década de 1980, no período constituinte e posteriormente, na elaboração da nova LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação), o tema da formação técnico-profissional novamente foi debatido intensa e controversamente. Aprovada a nova LDB, o debate não se esgotou, pelo contrário, se tornou mais complexa e está repleto de mistificações e armadilhas. Com efeito, a LDB aprovada, de caráter minimalista como a define Saviani,2 resultou de um projeto que correu paralelo à longa e intensa negociação efetivada por mais de 30 instituições da sociedade civil, e expressa, na sua essência, o enquadramento da educação fundamental, média e superior, e da formação técnico-profissional ao ajuste mais amplo da sociedade brasileira à nova (des)ordem mundial.
Por tratar-se de uma prática social constituída e constituinte de relações sociais, a formação técnico-profissional está, na sua organização, natureza institucional, financiamento e concepção político-pedagógica, imbricada na crise societária deste final de século. Esta crise é, ao mesmo tempo, sócio-econômica, teórica e ético-política. No âmbito sócio-econômico a crise se explicita pela desordem dos mercados mundiais, hegemonia do capital especulativo, monopólio da ciência e da técnica, desemprego estrutural e maximização da exclusão. No plano teórico, a crise se revela na incapacidade de referenciais de análise darem conta dos desafios do presente. Por fim, a crise ético-política, que se manifesta pela naturalização da exclusão, da violência e da miséria humana.
Nessas circunstâncias, tanto no plano societário mais amplo quanto em políticas específicas como é o caso da formação técnico-profissional, o risco é o surgimento de atitudes e medidas oportunistas, simplificadoras, ou de soluções mórbidas. A todo instante ouvimos falar que estamos em tempo de reestruturação produtiva de economia competitiva e de globalização. E, em face dessa realidade posta como "irreversível", a escola e as instituições de formação técnico-profissional necessitam ajustar-se. Esse ajuste postula uma educação e formação profissional que gere um "novo trabalhador"- flexível, polivalente e moldado para a competitividade. Cabe à escola e aos centros de formação profissional, nessa perspectiva, desenvolver um "banco" variado de competências e de habilidades gerais, específicas e de gestão. Diante das mudanças no mundo do trabalho, mormente da crise estrutural do emprego, já não se pensa em "formar para o posto de trabalho", mas formar para a "empregabilidade".
A análise que empreendemos neste breve artigo, não compartilha do ideário do ajuste e, por isso, objetiva interrogar os rumos dominantes que o governo e parte dos empresários, em nome do mesmo, direcionam a formação técnico-profissional. Mais que um horizonte democrático, desenha-se um processo de elitização, de reducionismo político-pedagógico e um terreno forte de mistificação e alienação.
Para apreender o contexto mais complexo em que se situa a formação técnico-profissional, neste artigo, vamos abordar quatro pontos. Primeiramente, de forma introdutória, sublinharemos que a globalização não é um fenômeno novo. Nova é sua escala, natureza e velocidade, e sua capacidade paradoxal de excluir e fragmentar. Por isso, tal como vem sendo veiculada constitui-se em mais uma poderosa ideologia do que em um conceito que nos ajude a compreender melhor a realidade. O segundo ponto busca caracterizar a construção da sociedade do trabalho-emprego ou sociedade salarial,3 como estratégia de inserção e coesão social. Nesse âmbito situam-se políticas de intervenção do Estado como forma de regulação social, algo impensável no capitalismo até os anos 30. É nessa estratégia que, nos anos 40, surgem no Brasil instituições de direito privado, mas com aportes do fundo público– como o Serviço de Aprendizagem Industrial (Senai) e o Serviço de Aprendizagem Comercial (Senac) – cuja função precípua era de oferecer formação-profissional em grande escala. No terceiro item procuraremos assinalar o processo de desmonte da sociedade salarial como resultado da "vingança do capital contra o trabalho" mediante as políticas neoliberais associadas ao monopólio da tecnologia, desregulação do capital e globalização excludente. Destacaremos, também, os cenários que se apresentam como conseqüência desse desmonte. Esses três primeiros itens nos permitem situar, no quarto ponto, a formação técnico profissional. No horizonte do ajuste ela assume o papel de política focalizada de inserção ou reinserção dos desempregados ou construtora de uma "carteira" ou "banco" de competências para a "empregabilidade, trabalhabilidade ou laborabilidade".4 Finalmente, nas considerações finais, assinalaremos alguns aspectos relacionados a um projeto societário alternativo de desenvolvimento e a função da escola básica e formação técnico-profissional. Questionaremos a tese de setores do governo e empresários que, em nome do chamado custo Brasil, afirmam a necessidade de reduzir os impostos e acabar com o recolhimento compulsório para a formação profissional. Realçaremos as implicações institucionais e as conseqüências sociais dessa perspectiva.
A globalização de final de século ou uma sociedade 20 por 80?
O processo de globalização (5) não é um fenômeno novo e, também, não é algo negativo em si mesmo. A positividade ou negatividade dos processos de globalização são definidos pelas relações sociais. Romper as barreiras das cavernas, dos guetos e da província tem sido uma busca constante na construção histórica do ser humano. Sua negatividade reside na forma de relações sociais até hoje vigentes – relações de classe – que tipificam, na expressão de Marx, a pré-história do gênero humano.
Sem dúvida, foi a revolução burguesa que acelerou exponencialmente o processo de globalização, mormente das mercadorias. Os pensadores que formularam o pensamento clássico da economia, Adam Smith e Marx, cada um dentro de sua perspectiva analítica, mostram que a sociedade capitalista impulsiona as mercadorias para mercados os mais distantes. Num dos mais divulgados e discutidos textos escritos por Marx e Engels, o Manifesto Comunista, que completou 150 anos em março de 1998, a positividade e negatividade da globalização é descrita de forma emblemática.
Onde quer que tenha assumido o poder, a burguesia pôs fim a todas as relações feudais, patriarcais e idílicas. (...) A burguesia não pode existir sem revolucionar constantemente os meios de produção e, por conseguinte, as relações de produção e, com elas, as relações sociais. (...)
A revolução contínua da produção, o abalo constante de todas as condições sociais, a eterna agitação e incerteza distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Suprimiram-se todas as relações fixas, cristalizadas, com seu cortejo de preconceitos e idéias antigas e veneradas; todas as novas relações se tornam antigas, antes mesmo de se consolidar. Tudo o que é sólido se evapora no ar, tudo o que era sagrado é profano, e por fim o homem é obrigado a encarar com serenidade suas verdadeiras condições de vida e suas relações como espécie. A necessidade de um mercado constantemente em expansão impele a burguesia a invadir todo o globo. Necessita estabelecer-se em toda a parte, explorar em toda a parte, criar vínculos em toda a parte.(6)
Neste texto, como em outros, Marx e Engels expõem o caráter contraditório das relações sociais capitalistas que engendram, ao mesmo tempo, elementos civilizatórios e progressistas e elementos de destruição, violência e exclusão. Trata-se de um processo que enfrenta, por isso mesmo, crises cíclicas cada vez mais profundas.
A forma que assume a globalização neste fim-de-século tem uma especificidade que é, em sua essência, o desbloqueio dos limites sociais impostos ao capital pelas políticas do Estado de bem-estar social. É, também, nesse sentido, uma revanche contra as conquistas sociais da classe trabalhadora. O ideário da globalização, em sua aparente neutralidade, cumpre um papel ideológico de encobrir os processos de dominação e de desregulamentação do capital e, como conseqüência, a extraordinária ampliação do desemprego estrutural, trabalho precário e aumento da exclusão social. Processo este que, como nos mostra Viviane Forrester(7) produz um quadro de "horror econômico e social". Trata-se, sob este aspecto, fundamentalmente, como nos mostra Cardoso(8) de uma noção ideológica .
O balanço que fazem inúmeros trabalhos de longo alcance histórico e filosófico não nos permite vislumbrar saídas fáceis no fim deste milênio e início do novo para a crise do capitalismo hoje existente. O breve século XX que se desenvolve entre duas sangrentas guerras mundiais, visto sob a ótica da crise,(9) ou o longo século XX, visto sob a ótica dos longos ciclos do capital,(10) marcou, também, na sua última metade, a Era de Ouro do capitalismo.
A crise do capitalismo que vivenciamos seria igual a tantas outras e, portanto, logo adiante voltaríamos a uma nova Era de Ouro, agora sob os auspícios da globalização? O autor que acabamos de citar não aposta nessa direção e conclui que não podemos continuar dentro da lógica nem do passado e nem do presente do capitalismo, por ser este um sistema para o qual "os seres humanos não foram eficientemente projetados". Assim como a "Era de Ouro" não atingiu de forma simétrica a todos, reduzindo-se, pelo contrário, a um grupo pequeno de nações no mundo, a globalização não significa maior equalização como insinua a ideologia dominante. Ao contrário, amplia-se a desigualdade entre Norte e Sul. Arrighi(11) fala-nos, neste contexto, da ilusão do desenvolvimento dos países periféricos.
O filósofo Istvan Mészáros,(12) em sua obra de maior relevância - Beyond Capital (1996) - aponta-nos uma questão mais radical sobre o momento histórico que vivemos. Contrariando as teses da supremacia das relações capitalistas e da via única, defende a tese do esgotamento da dimensão civilizatória do capital, explicitando-se, agora, apenas na sua face destrutiva. O ímpeto de destruição, até mesmo nos países que atingiram grande estabilidade social, tende a aumentar. Os problemas enfrentados atualmente pela França, Alemanha, Itália, entre outros países europeus que tiveram enormes conquistas sociais neste século, elucidam a tese de Mészáros. De acordo com Boaventura Santos,(13) há hoje na Europa 18 milhões de desempregados e 52 milhões de pessoas que vivem no limiar da pobreza. Numa densa resenha Daniel Singer sintetiza-nos a tese de Mészáros.
Na verdade, já há algum tempo o capitalismo perdeu a sua função "civilizatória" enquanto organizador impiedoso mas eficiente do trabalho. (...) Simplesmente para prosseguir existindo o sistema funda-se cada vez mais no desperdício, na "obsolescência planejada", na produção de armas e no desenvolvimento do complexo militar. Ao mesmo tempo, o seu impulso incontrolável para a expansão já produziu efeitos catastróficos para os recursos naturais e o meio ambiente. Nada disso impede ao sistema de produzir "trabalho supérfluo", vale dizer desemprego em massa. Além disso, como para frisar a gravidade de sua crise atual, nos últimos vinte anos o capitalismo vem abolindo todas aquelas concessões que, sob o genérico nome de Estado de Bem-Estar, supostamente justificavam a sua existência.(14)
Estamos diante, pois, de um processo de globalização com uma velocidade sem precedentes viabilizada por novas tecnologias microeletrônicas, informacionais e energéticas e com formas de exclusão, também sem precedentes, sustentadas pela ideologia e políticas neoliberais. Trata-se de políticas fundamentalmente orientadas para garantir os lucros do capital financeiro, em sua maior parte especulativos. A magnitude dessa especulação pode ser indicada no fato de que para "cada cem dólares que circulam diariamente no globo apenas dois pertencem à economia real" (15). Nesse processo não só o sistema produtivo é secundarizado como, especialmente, vem reduzindo a limitada esfera pública burguesa construída para fazer face à crise do capital e ampliada pelas lutas dos trabalhadores. Minimiza-se, assim, a esfera dos direitos sociais, mediante a delapidação do fundo público.(16)
Contrariamente à ideologia da globalização que instaura o senso comum de que a mundialização do capital favorece a todos, amplia-se e aprofunda-se a contradição entre as possibilidades tecnológicas de satisfazer necessidades básicas e as relações sociais de exclusão. As novas tecnologias aplicadas à produção agrícola, por exemplo, permitem a organismos como a FAO afirmar que há hoje a capacidade de produzir alimentos em abundância para 12 bilhões de pessoas. Isso choca-se brutalmente com uma realidade em que mais de três bilhões, dos seis bilhões de habitantes do planeta, vivem em níveis lamentáveis de subnutrição.(17) Os escritores Hans Peter Martin e Harald Schumann18 caracterizam essa sociedade de final de século com o neologismo – "sociedade 20 por 80". Uma realidade que estendei 20% aos direitos sociais e individuais e exclui deles 80%.
Para entender o significado de um dos aspectos da contradição de uma sociedade, ao mesmo tempo global, desigual, fragmentada e excludente, necessitamos apreender: como se constituiu o que Robert Castel(19) denomina de sociedade salarial e, mais amplamente, Boaventura Santos(20) denomina de sociedade contratual; como esta sociedade está sendo desmontada e quais as conseqüências deste desmonte no plano econômico-social mais amplo. Essas dimensões nos permitem, também, compreender o sentido e a função que assumem as políticas de formação profissional.
A construção da sociedade do trabalho-emprego ou sociedade salarial
A crise estrutural do emprego que vivemos neste final de século é uma das dimensões que podem nos ajudar a entender por que a idéia de que com globalização dos mercados e do capital todos ganham é falsa e cínica. Para que isso seja melhor apreendido é fundamental entender-se por que, especialmente a partir dos anos 30 deste século houve, sob a denominação de regulação fordista ou Estado de bem-estar-social, um enorme esforço de construção de políticas de pleno emprego e de direitos sociais na perspectiva de uma sociedade capitalista integradora.
A revolução burguesa, cuja hegemonia se afirma no século XVIII, representou uma mudança radical frente às relações de produção e trabalho e da própria significação de trabalho. Trata-se de um modo social de produção que tem como exigência intrínseca a propriedade privada dos meios e instrumentos de produção e a existência de trabalhadores, duplamente livres – não escravos ou servos (propriedade de outrem) e não detentores de meios e instrumentos de produção. Ou seja, uma força de trabalho disponível e constrangida indo ao mercado trocar horas de trabalho por seus meios de vida. Há concomitantemente um esforço, no plano simbólico e ideológico, de mudar a visão negativa do tripalium (instrumento de três partes para castigo) – herança da sociedade escravocrata – para uma perspectiva positiva, labor. Essa passagem não se deu de forma linear e simultânea em diferentes formações sociais e nem sem traumas, violência, lutas e revoltas. O caso da sociedade brasileira é o exemplo extremo de abolição tardia do regime escravocrata. Estigma que nos marca até o presente e que transforma nossas elites econômicas e políticas entre as mais truculentas, conservadoras e excludentes.
O ideário liberal conservador de organização societária, por partir de um suposto falso que afirmava a existência de uma "natureza humana" com uma razão, motivação, desejos e egoísmos iguais, tinha no mercado auto-regulado seu ideário fundamental. Por esse pressuposto, imaginava-se que a tendência em todos os planos sociais, mormente o econômico, seria o equilíbrio, a igualdade. Essa visão de uma natureza humana sem história, isolada das relações de poder e de classe, teve como resultado uma profunda desregulação social, revoltas, guerras entre as nações, grupos ou classes sociais. A Europa do final do século XIX expõe a tragédia do desemprego e da miséria, e milhares de seus cidadãos foram obrigados a emigrar para novas terras noutros continentes.
E no século XX, como mostra de forma rigorosa o historiador Eric Hobsbawm(21) no seu livro – A era dos extremos – O curto Século XX (1914- 1989), a tese do mercado auto-regulado explicita sua violência e desintegração social mais crucial. Mas é somente após a I Guerra Mundial e a revolução de 1917 na Rússia que os contingentes de proletários, pobres, desempregados, não integrados, passaram a ser encarados como um problema social, uma gangrena e ameaça à estabilidade social. Na mesma ordem de preocupações situa-se a realidade das nações subdesenvolvidas.
O industrial Henry Ford, nos anos 20 deste século, percebeu que, para que o capitalismo prosperasse, seria necessário criar uma sociedade integrada pela produção e consumo de massa e pelo pleno emprego. A idéia matriz é de que os operários pudessem se tornar clientes. Essa tese, que se estrutura num corpo conceitual, político e cultural sob o nome de fordismo, será assumida pelo capitalismo após a segunda Guerra Mundial. Keynes(22) traduz teórica e politicamente os fundamentos de uma sociedade capitalista que, para sobreviver, necessita regular o mercado por um Estado interventor e planejador. Essa necessidade de regulação do mercado é realçada por Karl Polanyi(23) em 1944 em sua obra A grande trasformação. Ao referir-se ao ideário do mercado auto-regulado seu diagnóstico é inequívoco: "Tal instituição não poderia existir por muito tempo sem aniquilar a substância da vida humana e material da sociedade; teria destruído o homem fisicamente e transformado o seu entorno em selvageria"
Mas é somente após o horror do nazismo e fascismo e da Segunda Guerra Mundial, que se busca criar mecanismos de regulação do mercado nos âmbitos nacional e internacional. Poderíamos dizer, na linha da análise de Mészáros,(24) que a sociedade capitalista busca conter a lógica desordenadora do capital. É neste contexto que surgem os Estados-Nação, com suas moedas e legislação e os organismos internacionais reguladores das relações entre as nações. ONU, OTAN, UNESCO, BID, FMI, BM, OIT,(25) são alguns dos mais importantes organismos que surgem neste contexto. E é a partir deste período que vinga a idéia do Estado de bem-estar social que se materializa pela constituição de uma esfera pública burguesa com um fundo público ampliado e mediante o progressivo controle monopólico, por parte dos Estados nacionais, dos setores estratégicos da economia. Um duplo mecanismo de regular o capital e, portanto, o mercado e a possibilidade efetiva de fazer política econômica e social. Por essa via, diz-nos Hobsbawm,(26) o capitalismo, pelo menos em vinte nações mais desenvolvidas, conheceu a sua idade de ouro.
A constituição de uma sociedade que integra os trabalhadores, como estratégia até de controlá-los, mas também como resultado das lutas dos trabalhadores organizados em sindicatos e partidos, implicou a desmercantilização da reprodução da força-de-trabalho e a constituição de uma esfera pública burguesa. Com efeito, mesmo com profundas desigualdades e níveis diversos entre as nações desenvolvidas e subdesenvolvidas, a educação, a saúde, o transporte, o lazer e cultura, a previdência social e o salário desemprego (em algumas poucas nações) passaram a se constituir em direitos sociais dos trabalhadores. Mediante as lutas dos próprios trabalhadores, o direito ao trabalho e à estabilidade no mesmo também foram se ampliando.
Assim, a sociedade salarial, como a compreende Robert Castel,(27) é aquela em que a maioria, mediante seu emprego, tem sua inserção social relacionada ao local que ocupa na escala salarial. O trabalhador certamente não se torna um proprietário com patrimônio, um capitalista, mas tem garantias de poder prever seu futuro e assegurá-lo dentro de padrões minimamente aceitáveis humanamente. O trabalho não vai se ligar apenas à remuneração de uma tarefa, mas emerge como direito.
Um capitalismo que regula o mercado e o capital não deixa de ser capitalismo e, portanto, não supera a existência das classes sociais e, portanto, da desigualdade social. Mas, na medida em que o emprego é encarado como um direito de integrar-se ao consumo, à vida e ao futuro, firma-se a idéia de que se o mercado privado não oferece emprego, o Estado tem a obrigação de fazê-lo. Esta conquista, nos países centrais, permitiu não só que o futuro fosse mais previsível, mas afirmou a expectativa de um futuro melhor para os filhos da classe trabalhadora. É ainda o historiador Hobsbawm(28) que mostra que as conquistas da classe trabalhadora européia não foram pequenas dos anos 50 aos anos 80 . Cabe enfatizar, todavia, como ele mesmo reconhece no livro A era dos extremos, que esta não foi a realidade dos países periféricos, como o Brasil. Aqui conhecemos estas conquistas marginalmente. O que imperou na América Latina, como avalia Eduardo Galeano,(29) foi o Estado de mal-estar social . De todo modo, as gerações de assalariados dos anos 30 até os anos 80, no Brasil, mesmo sob duas ditaduras e curtos períodos de democracia, puderam programar minimamente seu futuro. Antes do golpe civil-militar de 64, o empregado que atingisse 10 anos de emprego ganhava estabilidade. O custo da demissão era altíssimo.
É este edifício que desmorona neste final de século e com ele surge um tempo de insegurança ou ameaça do desemprego estrutural ascendente e de precarização do emprego. Produz-se, nos assalariados, particularmente nos precarizados e desempregados, um sentimento que o psicólogo Victor Frankel(30) diz ser similar ao dos tuberculosos e dos prisioneiros dos campos de concentração – de uma existência provisória sem prazo. O custo humano deste desmonte segue sendo assimétrico, embora atinja escala mundial.
O desmonte da sociedade-salarial e os cenários visíveis.
O conjunto de determinações que levam à crise a sociedade salarial é complexo para dele se dar conta neste espaço. Todavia, é possível, até onde nosso olhar alcança, vincar sua gênese e determinações fundamentais.
A determinação mais profunda radica-se na própria essência do capital – acumular, concentrar, centralizar e, como conseqüência, excluir concorrentes e explorar a força de trabalho. Os anos de ouro do capitalismo, paradoxalmente, se deram, pela capacidade de enquadrar, conter e disciplinar a lógica destrutiva do mercado auto-regulado e do capital mediante a construção de uma esfera pública capitalista. A globalização dos mercados, de forma assimétrica, e do capital especulativo financeiro, que instauram uma verdadeira desordem mundial, é o epílogo de um processo de resistência do capital à sua regulamentação. Já nos anos 40-50 o capital burla as fronteiras dos Estados-Nação mediante a instalação das multinacionais. Trata-se de empresas filiais das matrizes dos centros hegemônicos do capital que se ramificam no mundo buscando mercados onde a exploração da força-de-trabalho e da própria matéria-prima lhes são vantajosas. Em seguida, anos 60/80, aprofunda-se a liberdade do capital mediante as transnacionais. Trata-se de empresas que transitam acima do controle efetivo das nações e criam seu próprio espaço de poder. A globalização ou mundialização do capital, primordialmente do capital financeiro e especulativo, completa o circuito da perda do poder de as sociedades nacionais controlarem o poder anárquico do capital.(31)
O resultado deste processo é uma falência dos estados nacionais mediante a perda da capacidade de suas moedas - crise fiscal e crescente delapidação do fundo público para honrar ganhos do capital especulativo. As reformas do Estado, sob a tríade desregulamentação/flexibilização, autonomia/descentralização e privatização, são, em verdade, políticas oficiais de desmonte da sociedade-salarial e da limitada estratégia de uma sociedade integradora.
No plano da esfera produtiva, presenciamos um crescente monopólio da ciência e da técnica. Isso permite ao setor produtivo ter crescimento com incremento de capital morto e diminuição de capital vivo – força de trabalho. Isto significa que a retomada do desenvolvimento, dentro de um mercado auto-regulado, vai dar-se ou pode dar-se sem efetivo acréscimo de emprego. Mas o fenômeno mais destrutivo é a hegemonia do capital volátil, especulativo, que em poucos meses desorganiza nações aniquilando suas moedas. A recente desvalorização do real nos meses de janeiro e fevereiro de 1999 é um exemplo emblemático disso. O resultado imediato nos é fornecido pelo Banco Mundial em termos de aumento da miséria. Em dois meses – janeiro e fevereiro de 1999, o Banco Mundial avalia que 10 milhões de brasileiros regrediram ao estado de miséria absoluta. Isso significa, em termos de indicadores internacionais, que estas pessoas dispõem de uma renda de apenas dois dólares por dia para sobreviverem.
O desmanche da sociedade do emprego ou salarial, dentro de uma realidade onde pode haver aumento da produtividade e da expansão econômica sem incrementos proporcionais de emprego, pode ser emblematicamente apreendida pelo debate de dois magnatas da área de computadores: John Gage da "Sun Microsistems", e David Packard, da "Hewlett-Packard" mediados pelo professor Rustum Roy, num seminário que reuniu os governos e empresários mais poderosos do mundo e alguns intelectuais no luxuoso hotel Fairmont, em São Francisco, para marcar a instalação da Fundação Gorbachev.
John Gage referindo-se aos seus empregados declara: "cada qual pode trabalhar conosco quanto tempo quiser, também não precisamos de visto para nosso pessoal do exterior (...) Empregamos nosso pessoal por computador, eles trabalham no computador e também são demitidos por computador."
Dirigindo-se a David Packard diz: "Isso você não consegue tão rapidamente, David?"
David Packard retruca: "De quantos empregados você realmente necessita, John?"
"Seis, talvez oito. Sem eles estaríamos falidos. Quanto ao local do planeta onde eles vivem, isso não importa em absoluto" – responde John
O mediador, prof. Rustum Roy intervém e pergunta: "E quantas pessoas trabalham atualmente para a Sun Systems?"
"São dezesseis mil, mas exceto por uma pequena minoria todos demissíveis em caso de racionalização", responde Gage.(32)
A palavra racionalização é uma espécie de condensador que engendra um poderoso simbolismo e pode ser traduzida por: reengenharia, reestruturação produtiva, flexibilização, desregulamentação, descentralização e autonomia. Como nos mostra Déjours, é a partir da necessidade de racionalização que o receituário empresarial e dos governos neoliberais, monitorados por consultorias especializadas, aconselham: enxugar os quadros, tirar o excesso de gordura, arrumar a casa, passar o aspirador, fazer uma faxina, desoxidar, tirar o tártaro, combater a cirrose ou a ancilose".(33)
Qual é o futuro da sociedade salarial ou do trabalho assalariado dentro desse quadro exposto? Esta, também, não é uma pergunta de resposta fácil. Os indicadores do presente, todavia, são inequívocos. O desemprego é o problema social e político fundamental neste final de século. Para Robert Castel(34) o cenário visível é bastante preocupante. As políticas neoliberais e a hegemonia do capital especulativo de um lado e, de outro, o desenvolvimento produtivo centrado sobre a hipertrofia do capital morto – isto é – ciência e tecnologia, informação como forças de produção, acabam desenhando uma realidade onde encontramos:
- Desestabilização dos trabalhadores estáveis. Essa desestabilização dá-se pela intensidade na exploração e pela permanente ameaça de perda do emprego.
- Instalação da precariedade do emprego mediante a flexibilização do trabalho, trabalho temporário, terceirização, etc.
- Aumento crescente dos sobrantes. Trata-se de contingentes não integrados e não integráveis ao mundo da produção.Essa realidade se apresenta com estatísticas alarmantes: um bilhão e duzentos mil desempregados no mundo; taxas de desemprego que variam de 10% a 22% na Europa. Essa situação é amenizada pela existência de uma sociedade civil forte e de uma tradição histórica que garante, mediante o fundo social, a não-proliferação da indigência.
Estatísticas tão alarmantes se explicitam nos países periféricos da América Latina, África e Ásia. São Paulo, um centro do capital internacional, tem uma taxa de desemprego de 19%. Somente em São Paulo, há 1.700.000 trabalhadores desempregados. As taxas de dezembro da Argentina chagam a 18%. A diferença, nos países periféricos, é que não há nem tradição histórica, nem sociedade civil fortemente organizada e nem fundo público para evitar a miséria e a indigência. Mais grave que isso é que se desmontou, mediante a privatização, a capacidade real de fazer política econômica e social. A cultura de sonegação, o privilégio a empresas, e sobretudo a bancos, de não recolherem impostos favorecidos por uma legislação injusta e, mais a renúncia fiscal, impedem a criação de um fundo social capaz de garantir direitos elementares. Nesse quadro, as políticas que buscam fazer face ao desemprego são no mínimo contraditórias, quando não paliativas.
Boaventura Santos(35) avalia os efeitos das políticas neoliberais como instauradoras do "fascismo social" que se explicita por seis formas fundamentais: o fascismo do apartheid social, do Estado paralelo, fascismo paraestatal, o fascismo contratual, o fascismo da insegurança e, finalmente, o fascismo financeiro.
Todas essas formas de fascismo representam quebra do contrato social que se fundava, em relação ao trabalhador, no emprego, e a um conjunto de garantias e direitos. O neoliberalismo rompe e sepulta essas garantias e direitos. "O projeto neoliberal de transformar o contrato de trabalho num contrato de direito civil como qualquer outro configura uma situação de fascismo contratual. Essa forma de fascismo ocorre hoje freqüentemente na situação de privatização dos serviços públicos, da saúde, segurança social, da eletricidade etc.". (36)
A fragilização do trabalhador é reforçada pelo fascismo da insegurança. Este, como nos mostra Boaventura Santos, se manifesta em "grupos sociais vulnerabilizados pela precariedade do trabalho que manifestam elevados níveis de ansiedade e insegurança quanto ao presente e ao futuro, de modo a fazer baixar o horizonte de expectativas e a criar a disponibilidade para suportar grandes encargos, de modo a obter reduções mínimas dos riscos e da insegurança".(37)
O fascismo contratual e da insegurança configuram um quadro onde, para Boaventura Santos,(38) prosperam a venda de " ilusões de segurança" mediante planos privados de seguros saúde e fundos de pensão privados. Certamente, na mesma linha, podemos perceber ansiedade dos trabalhadores adultos e, dos jovens, mesmo de classe média, para se agarrarem em diferentes cursinhos que lhes prometem "empregabilidade".
A formação técnico-profissional como política de inserção e reinserção dos desempregados
Estamos vivendo um final de século paradoxal. A grande maioria dos governos dos países periféricos se ajustam à reengenharia e à reestruturação produtiva, flexibilizam, desregulamentam e apostam, uma vez mais, no mercado auto-regulado. Ora, como nos ensina o octogenário historiador inglês Eric Hobsbawm, (39) o mercado exclui como o gás carbônico polui. Qual seria, então, o alcance das políticas de inserção e reinserção de desempregados numa economia cuja produtividade aumenta cada vez mais pelo incremento no processo produtivo de capital morto (ciência e tecnologia) e de novos métodos de racionalização e organização do trabalho? Qual o poder da escola, da educação básica (fundamental e média) e, especialmente, do ensino técnico-profissional, enquanto instrumentos efetivos nesse processo de inserção e reinserção face aos limites do desenvolvimento do tipo fordista, por sua destruição das bases materiais da vida, em face da crise estrutural do desemprego?(40)
A magnitude da dificuldade de reverter o quadro do desemprego estrutural deste final de século pode ser percebida no fato de que, no mês de maio de 1999, a poderosa "Comissão Européia"- uma espécie de alto comando da União Européia - tentou pela terceira vez e não conseguiu assinar um pacto para o emprego. Com a memória dos horrores de duas guerras mundiais neste século, a Europa busca compensar a crescente incapacidade de criar novos postos de trabalho mediante um fundo social capaz de minimizar as ameaças de degradação social. Esta, todavia, não é uma tarefa fácil nem mesmo para economias do capitalismo central. Para Robert Castel( 41), os cenários à vista, em relação à crise do desemprego e à crise da sociedade salarial, são complexos e preocupantes. Aponta-nos, este autor, quatro cenários presentes de formas diversas nas diferentes formações sociais capitalistas.
O pior cenário é o de uma radicalização das políticas neoliberais numa crescente mercantilização dos direitos sociais, a ruptura crescente da proteção ao trabalho e a instalação de um mercado auto-regulado. Nesse cenário o número de trabalhadores sobrantes se amplia e suas vidas se precarizam ficando na dependência de planos emergenciais de alívio à pobreza, da filantropia e da caridade social.
O segundo cenário, que não elide o primeiro, adotado pela maioria dos países, é de atacar pelos efeitos. Instauram-se políticas focalizadas de inserção social. As políticas de formação profissional, na perspectivas que vêem assumindo nos anos 90, parecem se enquadrar como parte desse segundo cenário.
O terceiro cenário é a auto-organização dos excluídos mediante uma organização alternativa do trabalho – uma nova cultura do trabalho. Esta realidade vem sendo cunhada com nomes diferentes e com sentidos diversos. Economia solidária é o mais geral. No Brasil, a UNITRABALHO (Rede Interuniversitária de Estudos e Pesquisa sobre Trabalho) tem um comitê que busca efetivar um inventário sobre a economia solidária. Mas também encontramos os conceitos de economia popular, economia de sobrevivência e, mais amplamente, de mercado informal . Há, aqui, questões de várias ordens. A primeira é de diferenciação de perspectivas que engendram estes conceitos. A segunda é de se averiguar qual o alcance global destas alternativas e o que há de romantização ou efetivamente de novo em termos de relações econômicas e cultura do trabalho.
Por fim, um quarto cenário explicita as teses daqueles que já decretam que chegamos à sociedade do conhecimento, sociedade do entretenimento, do lúdico ou do fim do trabalho e a sociedade do tempo livre. De imediato esta tese se choca com a multidão de sobrantes, cujo tempo livre não significa nem entretenimento, nem tempo lúdico, mas tempo torturado de precariedade – existência provisória sem prazo.
Como se situa a questão da escola básica e da formação técnico-profissional neste contexto na visão dos condutores das políticas do ajuste, desregulamentação, descentralização e "autonomia" e da Privatização? Que perspectivas de educação básica e de formação técnico-profissional se tecem historicamente no Brasil numa direção oposta?
No Brasil dos anos 90, tem se efetivado uma alteração profunda do sistema educacional no seu conjunto, especialmente da formação técnico-profissional. A alteração dá-se tanto no plano organizativo, quanto no plano político-pedagógico. A profundidade e as conseqüências funestas dessa alteração somente podem ser entendidas quando as situarmos dentro do projeto societário que vem sendo construído, em nome da globalização, por forças econômicas e políticas que Francisco de Oliveira (42 )denomina de "vanguardas do atraso".
As reformas que se processam no âmbito educativo e especificamente na formação técnico-profissional estão claramente predefinidas como estratégia particular do denominado ajuste estrutural que implica as reformas do Estado no plano político-institucional e no plano econômico-administrativo. O bloco de poder que governa hoje o Brasil, antes mesmo de assumir o governo, como mostra Cunha,(43) tinha um projeto elaborado por especialistas para ser aplicado na sociedade. O caráter minimalista e desregulamentador da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394. de 20.12.96)(44 )se coaduna tanto à estratégia de impor pelo alto um projeto preconcebido, quanto com a tese do Estado mínimo" com a tríade do ajuste estrutural: desregulamentação, descentralização e privatização. Ou seja, como observa Saviani, isso deixa "o caminho livre para a apresentação de reformas pontuais, tópicas, localizadas, traduzidas em medidas como o denominado "Fundo de Valorização do Magistério", os Parâmetros Curriculares Nacionais", a lei de reforma do ensino profissional e técnico. (...).(45)
O resultado desse caráter minimalista é exemplarmente explicitado na nova conformação que assume o ensino técnico-profissional. Desde o momento que o atual governo assumiu, desencadeou-se uma grande bateria de proposições e propostas de regulamentação. O projeto de Lei nº 1603/96(46) contempla esse arsenal de proposições condizentes com o projeto do governo para o ensino técnico-profissional. Este Projeto de Lei esbarrou com a disputa dos educadores, especialmente os vinculados ao Sistema Federal do Ensino Técnico Industrial, que postulavam alterações na direção da concepção de um ensino técnico unitário, tecnológico ou politécnico e de caráter público. A aprovação da LDB minimalista aliviou o executivo desta pressão e, imediatamente, retirou o referido PL e o transformou, autocraticamente, em Decreto nº 2208 de 17.04.97,(47) impondo a reforma que desde o início postulava.
O Decreto nº 2.208/97(48) representa uma regressão ao dualismo e exacerbação da fragmentação. O dualismo se cristaliza pela separação das dimensões técnicas e políticas, específicas e gerais, particulares e universais e pela separação do nível médio regular de ensino da rede não regular de ensino técnico-profissional com organização curricular específica e modular. Esta rede não-regular de formação técnico-profissional se estrutura em três níveis:
O nível básico para a massa de trabalhadores, jovens e adultos, independentemente da escolarização anterior, mas certamente igual ou inferior ao ensino fundamental, que tem o objetivo de "qualificar, requalificar ou reprofissionalizar". Este nível abre espaço de intensa atuação para o atual Sistema S e define um novo papel das Escolas Técnicas Federais, o que caracteriza aquilo que Cunha(49) denominou de senaização das Escolas Técnicas Federais. Além disso, é um terreno aberto para quem queira disputar os recursos públicos do FAT (Fundo de Assistência do Trabalhador). Trata-se de cursos que não estão sujeitos à regulamentação curricular.
O nível técnico, com uma organização curricular independente destinado a matriculados ou egressos do ensino médio. Aqui situa-se a pressão e a direção para onde quer se encurralar o Sistema de Escolas Técnicas Federais. Trata-se de "flexibilizar seus currículos" adaptando-os às "competências" demandadas pelo mercado. Trata-se de um currículo modular, fundado na perspectiva das habilidades básicas e específicas de conhecimentos, atitudes e de gestão da qualidade, construtoras de competências polivalentes e, supostamente, geradoras da empregabilidade. Módulos que podem ser compostos em diferentes instituições públicas ou privadas. Subjacente a essa mudança e em consonância com as diretrizes do Banco Mundial, situa-se a estratégia de transformar esse tipo de ensino num serviço a ser oferecido para o financiamento tanto do setor privado empresarial quanto do setor público. Vale dizer, um mecanismo claro de privatização.
A política do governo do Estado de Minas Gerais (período de 1995-1998), apresentado como modelo de adaptação aos padrões da qualidade total sob os auspícios do financiamento e da orientação político-pedagógica do Banco Mundial, em relação ao ensino técnico-profissional, antecipa uma possível tendência da privatização. Com efeito, criou os CREPs (Centros de Educação Profissional), de modalidade diversa, de acordo com a especificidade econômica regional, construídos com o fundo público e entregues para a gestão da iniciativa privada.(50) Essa medida, além de profundamente antidemocrática, por engendrar um pressuposto de uma educação e formação profissional restrita e localista, choca-se com o ideário da necessidade de formar um profissional polivalente e capaz de "integrar-se" ao mercado global e reestruturação produtiva.
Por fim, o nível tecnológico, destinado a egressos do ensino médio e técnico, para a formação de tecnólogos em nível superior em diferentes especialidades.
O deslocamento do sistema de ensino técnico industrial do âmbito do ensino regular e sua senaização permite ao governo, ao setor empresarial e grupos ou Departamentos Regionais do Sistema S encamparem a tese de diminuição do custo Brasil e, portanto, a revogação do recolhimento do imposto compulsório. Frente a esta possível ameaça para o futuro, o Senai passou a adotar uma estratégia de gestão, baseada em Unidades de Negócios, vendendo serviços segundo as demandas dos setores privados e público. O que se apresentava como uma tendência no início dos anos 90, é hoje uma realidade no Senai e, em menor escala e intensidade, começa a contagiar também alguns Departamentos Regionais do Senac. Na conclusão, assinalaremos algumas implicações e conseqüências em termos sociais deste encaminhamento.
Mediante essas reformas, a educação regular e, especialmente, a formação técnico-profissional aparecem, uma vez mais, como sendo a "galinha dos ovos de ouro" que pode nos ajustar à nova ordem mundial definida pela globalização e reestruturação produtiva. A novidade, diferente da perspectiva ideológica da teoria do capital humano dos anos 60/70 é que o objetivo não é de integrar a todos, mas apenas aqueles que adquirirem "habilidades básicas" que geram "competências" reconhecidas pelo mercado. Competências e habilidades para garantir não mais o posto de trabalho e ascensão numa determinada carreira, mas da empregabilidade. O ideário das novas habilidades – de conhecimento, de valores e de gestão, – e, portanto, de novas competências para a empregabilidade apagam o horizonte da educação e formação técnico-profissional como um direito subjetivo de todos. Trata-se, agora, de serviços ou bens a serem adquiridos para competir no mercado produtivo – uma perspectiva educativa produtivista, mercadológica, pragmática e, portanto, desintegradora.
A educação e a formação para a "empregabilidade" seriam a chave mágica para superar a crise do desemprego estrutural e do desmonte da sociedade salarial?
No plano da mistificação, a idéia que se passa é de que o "fim do emprego" é algo positivo para a competitividade e de que, em realidade, com isso, todos ganham. Esse senso comum é partilhado não só pela "literatura de aeroporto", mas por planos de governos neoliberais, ONGs e de instituições ligadas ao sistema educacional e à formação profissional. Nos planos governamentais, as noções de flexibilização e desregulamentação mascaram o jargão mais tosco dos receituários dos consultores de "recursos humanos", para fundamentar o deslocamento da responsabilidade social com o emprego e instaurar o que Boaventura Santos denominou de "fascismo contratual e fascismo da insegurança". Nos pareceres e diretrizes da educação e formação profissional, a dissimulação é ainda mais rebuscada. Os argumentos para uma perspectiva individualista de educação e de formação técnico-profissional estruturada a partir de um "banco ou carteira" de habilidades e competências se baseia tanto em argumentos de que vivemos numa sociedade em rápidas mudanças, quanto em argumentos fundados na ideologia do pós-modernismo que realçam as diferenças (individuais) e a alteridade. Neste particular, a diferença e a diversidade mascaram a violência social da desigualdade.
O texto que segue sintetiza o senso comum que se tem instaurado em relação à noção de empregabilidade e evidencia o seu elevado grau de mistificação.
"A empregabilidade é um conceito mais rico do que a simples busca ou mesmo a certeza de emprego. Ela é o conjunto de competências que você comprovadamente possui ou pode desenvolver – dentro ou fora da empresa. É a condição de se sentir vivo, capaz, produtivo. Ela diz respeito a você como indivíduo e não mais à situação, boa ou ruim da empresa – ou do país. É o oposto ao antigo sonho da relação vitalícia com a empresa. Hoje, a única relação vitalícia deve ser com o conteúdo do que você sabe e pode fazer. O melhor que uma empresa pode propor é o seguinte: vamos fazer este trabalho juntos e que ele seja bom para os dois enquanto dure; o rompimento pode se dar por motivos alheios à nossa vontade. (...) (empregabilidade) é como a segurança agora se chama (Grifos meus).(51)
As noções de empregabilidade, trabalhabilidade ou laborabilidade, que buscam positivar a situação de desmonte da sociedade salarial, quando confrontadas com a realidade não apenas evidenciam seu caráter mistificador mas, sobretudo, revelam também um elevado grau de cinismo. Com efeito, para o contingente de pessoas – mais de um bilhão no mundo – que, como nos lembra Forrester,(52) tem como emprego ou ocupação, de todos os dias da semana, todas as semanas do mês e de todos os meses do ano, a procura de um emprego, essas noções não evidenciam uma realidade humanamente promissora.
"(...) uma bela palavra soa nova e parece prometida a um belo futuro: "empregabilidade, que se revela como um parente muito próximo da flexibilidade, e até como uma de suas formas. Trata-se, para o assalariado, de estar disponível para todas as mudanças, todos os caprichos do destino, no caso dos empregadores. Ele deverá estar pronto para trocar constantemente de trabalho (como se troca de camisa, diria a ama Beppa). Mas, contra a certeza de ser jogado "de um emprego a outro", ele terá uma "garantia razoável", que dizer, nenhuma garantia de encontrar emprego diferente do anterior que foi perdido, mas que paga igual".(53)
Essas noções, tão em voga hoje nas diretrizes governamentais de educação básica, média, superior e na formação profissional, talvez mais nos dificultem que ajudem a enfrentar o desafio de buscar alternativas de construção de uma sociedade democrática comprometida em assegurar os direitos de educação, saúde, habitação, transporte, lazer, cultura, emprego e seguridade social. Também não serão, certamente, noções mágicas que darão às instituições de formação profissional a base para suas políticas presentes e futuras.
Considerações Finais
O historiador Eric Hobsbawm, (54) no último parágrafo do livro Era dos Extremos nos diz que não sabemos para onde vamos, mas sabemos o que nos trouxe até aqui e que, se continuarmos os rumos do passado e do presente para o novo milênio, vamos fracassar. E o preço desse fracasso será a escuridão. O rumo a reforçar não é, pois, do ajuste subordinado à globalização e reestruturação produtiva que produzem uma sociedade da exclusão e de desintegração social. Também a direção a reforçar não é de uma reforma estrutural calcada no ideário neoliberal do Estado mínimo (em suas funções de atendimento aos direitos sociais) e, portanto, na estratégia da desregulamentação, descentralização e privatização. Como nos indica Tarso Genro, necessitamos de uma reforma de Estado oposta à que está em curso.
" Trata-se de compartilhar uma nova concepção de reforma do Estado, a partir de uma nova relação Estado-Sociedade que abra o Estado às organizações sociais (e à participação do cidadão isolado), particularmente aquelas que são auto-organizadas pelos excluídos de todas as matizes, admitindo a tensão política como método decisório e dissolvendo o autoritarismo do estado tradicional sob pressão da sociedade organizada." (55)
O projeto de sociedade brasileira a construir implica, como vêm apontando inúmeros estudos, uma opção de vinculação com o mundo, mas de forma soberana. Essa soberania somente é possível de ser construída, como aponta Genro, com a efetiva participação da sociedade. Não se trata de partir de um ponto zero. A história brasileira não se reduz à história dos grupos conservadores. Celso Furtado , num pequeno e denso livro de traço biográfico - O Capitalismo global (1999) - recupera os fundamentos de um projeto de desenvolvimento balizado nos objetivos estratégicos de preservação do patrimônio natural e o "pleno" desenvolvimento dos seres humanos concebidos como um fim, portadores de valores inalienáveis". (56 )As condições prévias de viabilidade desse projeto passam por um conjunto de decisões dentre as quais se destacam: uma nova postura em face da dívida externa, que é econômica, social, ética e politicamente impagável; uma ampla desconcentração e democratização da renda (uma das mais desiguais do mundo hoje); ampliação e proteção do mercado interno objetivando a criação de empregos; uma efetiva reforma agrária; impostos progressivos e estancamento da sonegação fiscal e dos mecanismos antidemocráticos de renúncia fiscal; taxação das grandes fortunas; maciço investimento em educação, ciência e tecnologia, etc. Essas medidas apontam para a necessidade de ampliar de forma substantiva o fundo público e a criação de mecanismos de seu controle democrático.
A imensa dívida social, em termos de atendimento dos direitos elementares da população brasileira dentro de uma esfera pública, pode ser elucidada comparativamente pela porcentagem do PIB que compõe o fundo público de alguns países. Entre os anos 80 e 95, a Inglaterra, berço do neoliberalismo, aumentou a proporção do fundo público de 34% para 36% do PIB, a França de 46% para 54%, a Itália de 42% para 54%, a Suécia, de 61% para 70%. Em sentido inverso, Brasil e Argentina, que seguem as cartilhas neoliberais do ajuste e a tese do Estado mínimo, tinham, aproximadamente, em 1980, uma proporção do PIB no fundo público de 35% e, que, em 1995 caiu para aproximadamente 28%.(57)
Esses números são eloqüentes para nos mostrar que a lógica do ajuste estrutural, particularmente ao capital especulativo, que efetiva uma sangria do fundo público e inviabiliza o atendimento dos direitos elementares dos cidadãos e, de outro lado, que a tese da diminuição do "custo Brasil" são decorrência de uma mentalidade e cultura histórica das elites do atraso. Ao contrário de nos levar competitivamente ao nível das nações que investem nas atividades cerebrais – produção de conhecimento básico e aplicado – e que se traduzem por um equilibro de uma maior igualdade social, passamos a servir de modelos de desintegração social e de aviltamento das condições de trabalho e de vida.(58) O sociólogo Ulrich Beck,(59) em seu livro Admirável mundo novo do trabalho, utiliza a expressão "brasilização do Ocidente" para referir-se à tendência de precarização do trabalho e condições de vida no mundo desenvolvido.
A educação escolar básica – ensino fundamental e médio – e superior tem uma função estratégica central dentro da construção do projeto alternativo de desenvolvimento acima aludido. Trata-se, primeiramente, de concebê-la como direito subjetivo de todos e o espaço social de organização, produção e apropriação dos conhecimentos mais avançados produzidos pela humanidade. Isso significa, como indica Antônio Nóvoa, que a função precípua da escola básica é de dar a base de conhecimentos, valores e "estimular as crianças a aprenderem a estudar e pensar e também a aprender a se comunicar e viver em conjunto (...) As democracias dependem da cidadania ativa e consciência clara das nossas responsabilidades sociais. A escola é a melhor instituição que pode cumprir esta tarefa, talvez a única". (60)
Isso, de imediato, nos indica que a melhor preparação para a vida, para a cidadania ativa, para a democracia e para o direito ao trabalho moderno é uma educação básica não produtivista e pragmática. Isso significa que é uma postura duplamente equivocada atrelar a escola básica (fundamental e média) ao imediatismo do mercado de trabalho e à ideologia das competências para a famigerada "empregabilidade" ou "laborabilidade". Trata-se de noções ideológicas que não engendram densidade histórica. Primeiramente, porque, se é básica, refere-se a todas as dimensões da vida humana e não unidimensionalmente ao mercado. Em segundo lugar, porque a relação do conhecimento básico com o mundo da produção é mediatizada pelas relações sociais.
Em relação à formação técnico-profissional, os embates sobre a origem do Senac e do Senai, nos indicam que essas instituições se estruturaram dentro da perspectiva fordista de um projeto de construção da sociedade do trabalho-emprego, da sociedade salarial e, portanto, numa perspectiva societária integradora, ainda que nos marcos restritos do capitalismo. Esta formação, sem dúvida, está mais diretamente ligada ao mundo da produção e ao mercado de trabalho. Sua efetividade social integradora, todavia, está condicionada fundamentalmente a dois pré-requisitos. Primeiramente, à existência de uma escolaridade básica de qualidade, entendida aqui numa dimensão não mercadológica, mas social. A segunda condição fundamental para não mistificar o papel da formação profissional é, inequivocamente, a existência de uma política econômica centrada na geração de emprego e com mecanismos de distribuição justa da renda nacional.
O deslocamento que a formação técnico-profissional vem sofrendo dentro do projeto de ajuste da economia brasileira à nova (des)ordem mundial parece situar-se em dois pólos, ambos, a nosso ver, pouco democráticos. A de constituir-se numa filantropia ou de elitizar-se numa perspectiva de uma sociedade desintegrada, hipertrofiando as dimensões individualistas e particularistas. Assume, assim dominantemente, uma função de intervenção focalizada cujo resultado é de tratar as conseqüências.(61) A política do PLANFOR (Plano Nacional de Educação Profissional) com recursos do FAT, elucida com clareza inequívoca o que acabamos de afirmar. O risco do PLANFOR é de reeditar o PIPMO (Programa Intensivo de Preparação de Mão-de-Obra) que, como nos mostra Barradas,(62) de programa emergencial de preparação intensiva de mão-de-obra que deveria durar 20 meses, acabou durando 20 anos.
As iniciativas de cursos do PLANFOR são tão diversas que intervenções focalizadas se materializam por uma dispersão sem limites. Os cursos podem ser para emitir passagens, fazer velas ou aquilo que uma revista de uma seita religiosa indica como solução para o desemprego – treinar os desempregados para oferecer serviços de catar piolho, cuidar de cachorros, catar minhocas – cursos que se centram em tecnologias de última geração ou a perspectivas mais amplas vinculadas aos interesses dos trabalhadores, como é o caso do projeto INTEGRAR. Mesmo neste último caso seus dirigentes sabem que, por si mesmos, esses cursos não têm a capacidade de criar emprego.
Vincular a política de formação profissional a um projeto de desenvolvimento centrado nas necessidades da população brasileira significa, ao contrário da perspectiva de transformar as instituições de formação profissional em unidades privadas de negócio, a necessidade de dilatar sua função pública. Com efeito, a breve análise que empreendemos nos evidencia que a tese de diminuição do Custo Brasil e a perspectiva de, em nome disto, acabar como o imposto compulsório e transformar o sistema de formação profissional em unidades de negócios é anacrônica e antidemocrática. Com isso se estaria reforçando a perspectiva de uma sociedade desintegradora e cada vez mais elitista. Isso porque o fim do compulsório significa, simplesmente, para instituições como o Senac e o Senai, o fim do sistema nacional e o isolamento de unidades fragmentadas. E pelo que conhecemos da realidade brasileira, 80% dos Departamentos Regionais encolheriam enormemente, deixando de atender milhares de jovens e adultos.
Outra conseqüência imediata é de que essas instituições passariam a cumprir o longo decálogo do "passar o aspirador", enxugar os quadros, tirar as gorduras, etc., demitindo milhares de trabalhadores. O exemplo da Fundação Getúlio Vargas e, em parte, do processo de "modernização" do Senai é claro neste sentido. A Fundação Getúlio Vargas (RJ), transformou-se na "era Collor" "numa unidade de negócio", de venda de serviços gerenciais, uma espécie de um cartório, fechando, mediante uma simples portaria, nove Institutos ligados à área social.
Esses casos colocam uma ulterior questão que ainda não é percebida de forma vigorosa na sociedade, mas que, em espaços mais democráticos, tem surgido. Trata-se de argüir-se a legitimidade de pequenos grupos – uma minoria – apropriar-se da marca, do acúmulo de conhecimentos e do patrimônio de 50 anos construído com fundo público pela nação brasileira e geri-los na venda de serviços – agora estritamente como negócio privado. Governos futuros que possam ir além da fraca democracia formal que temos hoje certamente não permitirão essa apropriação eticamente insustentável.
A direção da análise que empreendemos neste breve artigo nos indica que, se o nosso objetivo é dilatar as possibilidades de construção de um projeto de sociedade com democracia efetiva no plano econômico, social, cultural e educacional, e construir uma sociedade cujo ideário não seja a "exclusão sem culpa", o rumo que devem seguir a política e as instituições de formação técnico-profissional é de ampliar a sua função social e não de restringi-la. Nessa direção, o espaço do Sistema de formação profissional é o de institucionalmente empenhar-se na construção de uma proposta pedagógica capaz de adaptar-se à diversidade de situações de diferentes grupos de jovens e adultos que demandam essa formação específica. Isto implica, de outra parte, como insistimos acima, em ampliar o fundo público com controle democrático e não reduzi-lo.
Na tarefa de construirmos esta alternativa societária torna-se imperativa uma boa dose de utopia, pois sem esta não há educação e nem futuro humano. A utopia é uma tensão permanente daquilo que é posto como medida final, como imutável. É para isso que serve a utopia. A utopia é que nos ajuda a afirmar os princípios da igualdade, solidariedade e a gene-rosidade humana.
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Notas
1 RODRIGUES, J. O moderno Príncipe Industrial: o pensamento pedagógico da Confederação Nacional da Indústria. Campinas: Ed. Autores Associados, 1998.
2 SAVANI, D. A nova lei da educação: LDB, trajetória, limites e perspectivas. Campinas/SP: Autores Associados, 1997.
3 CASTEL, R. As armadilhas da exclusão. In: CASTEL, R, WANDERLEY, L.W, WANDERLEY, M.: A desigualdade e a questão social. São Paulo: EDUC, 1997.
4 Como a noção de empregabilidade engendra a memória do emprego e, como mostra Castel (1977) op. cit., o mesmo denota mais que uma tarefa, mas um conjunto de direitos que permite aos assalariados, mesmo em circunstâncias precárias e desiguais, programarem seu futuro, os mentores das políticas oficiais de formação profissional , em nível de Ministério do Trabalho e das políticas de educação regular do MEC, para esvaziarem a crítica àquela noção, a metamorfosearam com as noções de trabalhabilidade ou laborabilidade.
5 O debate sobre o processo de globalização é amplo e polêmico. Alguns autores, como por exemplo CHESNAIS, F. Mundialização do capital. Petrópolis-RJ: Vozes, 1997, utilizam o conceito de "mundialização do capital". O leitor interessado em aprofundar o debate sobre globalização ver: HIRTS, Paul. Globalização: mito ou realidade? In: FIORI, José Luiz (org.) et ali. Globalização: o fato e o mito Rio de Janeiro: UERJ, 1999. p. 101-145; CARDOSO, M. L. A ideologia da globalização e descaminhos da ciência social. Rio de Janeiro, [s.n.] 1997. mimeo; IANNI, O. Teorias da globalização. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996; FURTADO, C. O Capitalismo global. São Paulo: Paz e Terra., 1999; DOS SANTOS, T. Economia mundial. Petrópolis-RJ: Vozes, 1993; DREIFUSS, R. A. A época das perplexidades: mundialização, globalização e planetarização - novos desafios. Petrópolis-RJ: Vozes, 1996; MARTIN, H. P., SCHUMANN, H. A armadilha da globalização: o assalto à democracia e ao bem-estar .São Paulo: Ed. Globo, 1996.
6 MARX, K , ENGELS, F. O Manifesto Comunista. Apud. LASKI, H.J. O Manifesto Comunista de Marx e Engels. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
7 FORRESTER, V. O horror econômico. São Paulo: UNESP, 1996.
8 CARDOSO, M. L. A ideologia da globalização e descaminhos da ciência social. Rio de Janeiro, [ s. n.] 1997. mimeo.
9 HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: o curto século XX (1914-1989). São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
10 ARRIGHI, G. O longo século XX. São Paulo: UNESP, 1966.
11 Id. A ilusão do desenvolvimento. Rio de Janeiro: Vozes, 1998. p. 207-250
12 MÉSZÁROS, I .B. Beyond capital: towards a theory of transition.[s.l.] Merlin Press, 1996. 994p.
13 SANTOS, Boaventura de Souza. Reinventar a democracia: entre o pré-contratualismo e o pós-contratualismo. In: HELLER, A. , SANTOS, Boaventura de Souza; CHESNAIS, F. et ali . A crise dos paradigmas em Ciências Sociais e os desafios para o século XXI. Rio de Janeiro: Contraponto-CORECON-RJ, 1999. p. 31- 75 .
14 SINGER, D. Para além da alienação. Journal The Nation, Nova York, 10.06.1996.
15 SANTOS, Boaventura de Souza. op. cit., p. 55.
16 OLIVEIRA, Francisco de. Os direitos do antivalor. Petropólis:: Vozes, 1998. O surgimento do antivalor: capital, força de trabalho e fundo público.
17 DEBRAY, R., ZIEGLER, J. Trata-se de não entregar os pontos. São Paulo: Paz e Terra, 1995.
18 MARTIN, H. P., SCHUMANN, H. A armadilha da globalização: o assalto à democracia e ao bem-estar. São Paulo: Globo, 1996.
19 CASTEL, R. op. cit.
20 SANTOS, Boaventura de Souza. op. cit.
21 HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX. 1914-1991. São Paulo: Cia das Letras, 1995. p. 391-562.
22 KEYNES, J.M. The general theory of employment , interest end money. New York: McMillan, 1970.
23 POLANYI, K. The great transformation. Boston , [s.n.] 1957.
24 MÉSZÁROS, I. B. op. cit.
25 ONU (Organização das Nações Unidas), OTAN ( Organização do Tratado do Atlântico Norte), UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação Ciência e Cultura); BID ( Banco Interamericano de Desenvolvimento); BM (Banco Mundial); FMI (Fundo Monetário Internacional); OIT ( Organização Internacional do Trabalho).
26 HOBSBAWM, Eric. op. cit.
27 CASTEL, R. op. cit.
28 HOBSBAWM, Eric. Adeus a tudo aquilo. In: BLACKBURN, R. Depois da queda: o fracasso do comunismo e o futuro do socialismo. São Paulo: Paz e Terra. 1992. p. 93-106
29 GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. 14. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
30 FRANKEL, V. (1944) Apud BEJZMAN, I. Degradação. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 06 ago., 1997. Caderno Informe p. 3.
31 A liberdade anárquica do capital especialmente na sua forma hegemônica - capital financeiro - longe de apresentar uma situação de saúde da sociedade capitalista, é sintoma de grave doença e crise. Como nos indica Oliveira op. cit., uma literatura ousada mostra que a perda do controle do capital financeiro especulativo está pondo em risco um dos fundamentos basilares da sociedade capitalista, a propriedade privada. O especulador causa enormes estragos a inúmeras empresas e pessoas, porém dificilmente é, dentro do direito positivo atual, passível de ser levado a juízo por danos e perdas.
32 MARTIN, H. P. , SCHUMANN, H. op. cit.
33 DEJOURS, C. A banalização da injustiça social. Rio de Janeiro: FGV, 1999.
34 CASTEL, R. op. cit.
35 SANTOS, Boaventura de Souza. op. cit.
36 Id. ibid., p. 33.
37 Id. ibid., p. 54-55.
38 Id. ibid.
39 HOBSBAWM, Eric. Renascendo das cinzas. In: BLACKBURN, R. Depois da queda: o fracasso do comunismo e o futuro do socialismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 255-270.
40 Para uma discussão mais detalhada desta questão ver FRIGOTTO, G. (Org.) et alii Educação e crise do trabalho: perspectivas de final de século. 2 ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 1998.
41 CASTEL, R. op. cit.
42 OLIVEIRA, Francisco de. As mudanças na esfera econômica , hegemonia política e as alternativas democráticas do Brasil nos anos 90. [s.l: s.ed.] Manaus, 01. 10. 1997 (conferência)
43 CUNHA, L. A. Educação Brasileira: projetos em disputa. São Paulo: Cortez, 1995.
44 BRASIL. Leis, Decretos. Lei n. 9.394, de 23 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional .Diário Oficial [da]República Federativa do Brasil, Brasília, v. 134, n. 248, p. 27833-27841, 23 dez. 1987. Seção I.
45 SAVIANI, D. op. cit.
46 BRASIL. Leis, Decretos. Projeto de Lei n. 1.603, de 18 de março de 1996. Dispõe sobre a educação profissional, a organização da rede federal de educação profissional, e dá outras providências. Diário da Câmara dos Deputados, Brasília, 03 de abril de 1996. p. 8534. Seção 1. Apresentado pelo Poder Executivo.
47 BRASIL. Leis, Decretos. Decreto n. 2.208, de 17 de abril de 1997. Regulamenta o parágrafo 2 do art. 36 e os art. 30 a 42 da Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, v. 135, n. 74 , p. 7760-7761, 18 abr. 1997. Seção 1.
48 Id. ibid.
49 CUNHA , L. A . Conferência proferida como pré-requisito do concurso de professor titular na Universidade
Federal do Rio de Janeiro/ UEFERJ, 1997.
50 Informações colhidas do prof. João Batista Viana, em texto mimeografado que por ele me foi enviado para inteirar-me das tendências que vem assumindo a formação técnico-profissional no Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte, 07.11.1997.
51 MORAES, C. Emprego ou empregabilidade. Revista Ícaro Brasil, n. 171, 1998. p.53-57.
52 FORRESTER, V. O horror econômico. São Paulo: UNESP, 1996.
53 Id. ibid., p. 118.
54 HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos. op. cit.
55 GENRO, T. Vinte e uma 21 teses para a criação de uma política democrática e socialista. Folha de São Paulo, São Paulo, 09, jun., 1996.
56 FURTADO, C. O Capitalismo global. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
57 Dados da OCDE fornecidos pelo Professor Atílio Boron -UBA-AR, em 29.10.1997, em conferência proferida na UFF-RJ.
58 Para se ter uma idéia da distância que nos encontramos em relação ao mundo desenvolvido, no âmbito do investimento na educação básica, os dados que indicamos a seguir são eloqüentes. Tomando-se dados oficias do governo e o sentido não claramente manifesto do Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério, percebe-se a fragilidade do investimento educacional em nosso país. O patamar para referência é de 314 reais aluno/ano. O relatório "Futuro em Risco", patrocinado pela Inter-American Dialogue e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, que trata da crise da educação na América Latina e as conseqüências na estagnação econômica, mostra-nos que o grau médio de gasto aluno/ano para o ensino fundamental e médio, nos países desenvolvidos, é de 4.170 dólares. Um dado bastante insólito, mas elucidativo, colhido num debate realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, foi-me apresentado por um vereador da cidade de Natal. Nessa capital, o custo médio aluno/ano na escola pública era de 444 reais e o custo para manter um preso na cadeia pública era de 444 reais/mês.
59 BECK, U. Entrevista. Folha de São Paulo, São Paulo, 23, maio, 1999. Caderno Mais.
60 NÓVOA, A. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13, jun., 1999. Caderno Empregos e Educação para o Trabalho.
61 Para uma avaliação do PLANFOR ver: UNITRABALHO - Avaliação do PLANFOR: uma política pública de educação profissional em debate. Cadernos UNITRABALHO, 2. São Paulo, 1999.
62 BARRADAS, A. da Silva. A Fábrica Pipmo. Rio de Janeiro: FGV, 1986. ( Dissertação de Mestrado).

A PEDAGOGIA DAS COMPETENCIAS E A PSICOLOGIZAÇÃO...

A Pedagogia das Competências e a Psicologização das Questões Sociais
Marise Nogueira Ramos*
Abstract
Shows three analytical tendencies related to the notion of competence: the association to the condutivism; the association to the constructivism and the association to the recents social-economic transformations. Situating the competence as a notion originated by the cognitive psychology, focuses that the last tendency express, actually, the social-economic apropriation of this notion, turning on the reference to the school work organization, directed by the necessity to adapt the subjects to the social instability as a phenomenon called as the psychologization of the social questions.
Key-words: Competence; Professional Education; Constructivism; Condutivism; Knowledge.
Introdução
As reformas educacionais realizadas em alguns(1) países europeus e latinoamericanos têm-se justificado pela necessidade de adequar a educação às demandas do mundo contemporâneo, tomando-se como base pressupostos e teorias psicológicas. Tem-se, assim, verificado uma forte adesão a uma concepção construtivista de aprendizagem, para a qual são de grande importância as idéias de memorização compreensiva, funcionalidade do conhecimento e aprendizagem significativa.(2)
À medida que tanto a educação profissional quanto a educação geral são questionadas sobre sua adequação ao presente estágio de racionalidade técnico-científica da produção, categorias relativas ao trabalho e à aprendizagem vão sendo sido sintetizadas, respectivamente, na forma de competências requeridas pela produção e competências adquiridas pelo trabalhador.
A idéia que se difunde quanto à pertinência do uso da noção de competência pela escola é que tal noção seria capaz de promover o encontro entre trabalho e formação. No plano do trabalho, verifica-se o deslocamento do conceito de qualificação em direção à noção de competência. No plano pedagógico, testemunha-se a organização e a legitimação da passagem de um ensino centrado em saberes disciplinares a um ensino definido pela produção de competências verificáveis em situações concretas e específicas. Essas competências são definidas em relação aos processos de trabalho que os sujeitos deverão ser capazes de compreender e dominar.
Como explica Tanguy,(3) o movimento de definição de um modelo pedagógico centrado na competência encontra sua expressão inicial no ensino técnico e profissionalizante – que não sofre a força de uma tradição centrada na transmissão de um patrimônio cultural, mas tende a organizar também a educação geral. A afirmação desse modelo no ensino técnico e profissionalizante é resultado do comprometimento mais imediato dessa modalidade de ensino com os processos de produção, impondo-lhe a necessidade de justificar a validade de suas ações e de seus resultados. Além disso, espera-se que seus agentes não mantenham a mesma relação com o saber que os professores de disciplinas academicamente constituídas têm, de modo que a validade dos conhecimentos transmitidos seja aprovada por sua aplicabilidade ao exercício de atividades profissionais.
As reformas educacionais buscam, assim, a formalização de uma pedagogia das competências, na medida em que essa noção extrapola o campo teórico para adquirir materialidade pela organização dos currículos e programas escolares. Nesse contexto, a noção de competência pode ser analisada na perspectiva das pedagogias psicológicas, desde sua identidade original com o condutivismo até a aproximação mais recente com o construtivismo. Por outro lado, a apropriação socioeconômica de uma noção originária da psicologia cognitiva conferiria à educação o papel de adequar psicologicamente os trabalhadores às relações sociais de produção contemporâneas. Nesse campo de contradições, problematizaremos a competência como uma noção propícia à abordagem psicológica de questões sociais.
1. A Noção de Competência na Dimensão Psicológica: Entre o Condutivismo e o Construtivismo.
Ao se discutir a origem da noção de competência, três tendências analíticas podem ser observadas: aquela que a associa ao condutivismo típico da década de 60, pelo qual a noção de competência se confunde com a de objetivos em pedagogia; outra, que admite esta associação, num primeiro momento, mas indica uma superação, distinguindo-a dos objetivos; e uma última, que identifica a noção de competência como algo efetivamente novo e apropriado às transformações sociais e econômicas de nossa época. Discutiremos nesse item as duas primeiras tendências.
1.1. A Noção de Competência e o Condutivismo.
A primeira tendência analítica considera que o uso da noção de competência deve-se à necessidade de se expressarem claramente os objetivos de ensino em termos de condutas e práticas observáveis. Essa associação estaria fundada sobre uma homologia entre os objetivos operacionais de formação e os objetivos operacionais de produção, alimentada por uma cultura psicológica dominada pelo behaviorismo de B. F. Skinner, apropriado pedagogicamente por B. S. Bloom e Mager.
Em meados da década de 60, nos Estados Unidos, enquanto David McClelland(4) argumentava que os tradicionais exames acadêmicos não garantiam nem o desempenho no trabalho nem o êxito na vida, postulando a busca de outras variáveis para predizer certo grau de êxito, Bloom, em seu artigo Aprendizagem para o Domínio,(5) declarava que 90 a 95% dos alunos teriam possibilidade de aprender tudo o que lhes fosse ensinado, desde que lhes oferecessem condições para isso e que o ensino fosse orientado por três objetivos comportamentais: pensar, sentir e agir, englobados em três áreas: cognitiva, afetiva e psicomotora.
Os objetivos de ensino expressam, portanto, a forma como as teorias sobre o comportamento humano desenvolvidas por B. F. Skinner,(6) foram inicialmente apropriadas pela pedagogia. Nesse autor,(7) a noção de comportamento não se distingue dos mecanismos da sua instalação, confundindo-se com o próprio domínio do saber que estruturaria o comportamento. B. S. Bloom,(8) um pedagogo com estudos baseados na obra de Skinner, definiu os objetivos como a "formulação explícita dos métodos que visam transformar o comportamento dos alunos; por outras palavras, os meios pelos quais estes modificarão a sua maneira de pensar, os seus sentimentos e as suas ações". A importância que Skinner deu ao contingente de esforços, Bloom conferiu aos métodos e meios. R. F. Mager(9) tenta afastar-se do behaviorismo preferindo a noção de performance ou desempenho, à de comportamento. Para Mager,(10) os objetivos do ensino são as ações manifestas e a sua descrição minuciosa. Um objetivo útil define-se pelo desempenho (o que o estudante é capaz de realizar), pelas condições nas quais deve transcorrer o desempenho e pela qualidade ou pelo nível de performance considerado aceitável.
Os principais problemas dessas teorias podem ser assim resumidos: a) reduzem os comportamentos humanos às suas aparências observáveis; b) reduzem a natureza do conhecimento ao próprio comportamento; c) consideram a atividade humana como uma justaposição de comportamentos elementares cuja aquisição obedeceria a um processo cumulativo; d) não coloca a efetiva questão sobre os processos de aprendizagem, que subjaz aos comportamentos e desempenhos: os conteúdos da capacidade.
Não obstante, essa teoria respaldou os primeiros estudos sobre currículo realizados por Bobbitt,(11) em 1918, pelos quais, em nome da eficiência econômica, transferem-se para o trabalho escolar os princípios tayloristas-fordistas de organização do trabalho industrial,(12) na forma dos princípios lógicos de Tyler de organização curricular. Por essa perspectiva, o currículo tomava por base as deficiências dos indivíduos, no sentido de superá-las em benefício do desenvolvimento racional e eficiente do trabalho. Desses padrões originaram-se os métodos de análise ocupacional utilizados para a elaboração de currículos da formação profissional. Esses padrões assentavam-se no preestabelecimento de objetivos, na seleção e no direcionamento das situações de ensino e na avaliação precisa da aprendizagem. Em outras palavras, a educação era dirigida e controlada por propósitos que estavam fora dela, quais sejam: as necessidades econômicas da produção capitalista. A Economia da Educação e a Teoria do Capital Humano se constituíram numa precisa sistematização econômica de como e por que adequar perfeitamente a produção científica dos recursos humanos, num contexto socioeconômico de pleno emprego.
1.2. A Noção de Competência e o Construtivismo.
Um dos autores que tenta analisar a problemática associação entre competências e objetivos na perspectiva da superação do condutivismo é Malglaive.(13) Este autor faz sua análise preocupado não com a educação em geral, mas com a formação do adulto, destacando que, diferentemente daqueles que estão na formação inicial, os adultos recorrem a novos períodos de formação em função das exigências explícitas de sua ação social e profissional. Neste caso, a formação seria orientada para as finalidades e esse processo aparece, então, "como um processo de produção das capacidades necessárias ao exercício das atividades sociais e profissionais que os formandos exercerão no final de sua formação".(14) Isto significa que a formação deve produzir efeitos necessariamente ligados à atividade futura dos formandos. Esta atividade mobiliza capacidades ou competências que a formação pode e deve visar e que se tornam, portanto, seus próprios objetivos. A pedagogia por objetivos, que tem como referência o behaviorismo de Skinner e seus seguidores, teria dado a materialidade inicial a este princípio.
Malglaive,(15) entretanto, faz uma distinção entre a perspectiva adotada na América e na Europa sobre os objetivos, considerando que os pedagogos europeus teriam sido muito mais influenciados por J. J. Rousseau e por uma psicologia ainda literária ou filosófica, centrada mais na pessoa, do que por uma psicologia condutivista. Considera, ainda, que a fonte de muitos mal-entendidos ou equívocos posteriores sobre os objetivos ocorreram devido à extrapolação que se fez de seu uso em relação à esfera a que, efetivamente, eles atendem: a da avaliação.
Malglaive(16) considera também ultrapassada a problemática da definição dos objetivos, devido tanto à evolução do trabalho quanto ao advento da psicologia cognitiva. Nesse novo contexto, a noção de comportamento, antes confundido com o próprio conteúdo da capacidade, daria lugar à de competência. Segundo ele, a noção de objetivos em pedagogia teria evoluído do controle normal da aquisição de conhecimentos à determinação de conteúdos de formação ordenados pelas atividades – mais freqüentemente profissionais – para as quais eles são supostamente preparados.
Perrenoud(17) é menos enfático sobre a possível superação da problemática relativa à definição dos objetivos. Ele não considera que as abordagens advindas da tradição da pedagogia do domínio estejam em absoluto superadas, mas sim que seus excessos – behaviorismo sumário, taxonomias intermináveis, excessivo fracionamento dos objetivos, organização do ensino por objetivo, dentre outros – foram controlados. Sendo assim, continua ele, falar a respeito de competência pode não acrescentar muita coisa à idéia de objetivo, pois é possível ensinar e avaliar por objetivos sem se preocupar com a transferência dos conhecimentos e, menos ainda, com sua mobilização diante de situações complexas. Ou, ainda, como afirma o próprio Malglaive,(18) é possível descrever um conjunto de ações que remeta para a competência subjacente, sem se perguntar como ela funciona. É o que acaba ocorrendo quando se tenta nomear, classificar, repertoriar as competências ao acrescentar ao verbo saber ou à locução ser capaz de uma expressão que caracteriza uma ação ou um conjunto de ações. Isso designaria, de fato, uma atividade e não uma capacidade ou competência. Conseqüentemente, mantém-se aberta a questão de saber o que devem adquirir os estudantes para serem capazes de fazer o que se pretende que eles façam.
Essa questão tem sido equacionada por este último autor(19) pelo que ele denomina de estrutura dinâmica das capacidades. Esta baseia-se na idéia de saberes em uso, compreendida como a ação do pensamento sobre os saberes que orientam uma ação material ou simbólica, estruturante de novos saberes. Os saberes em uso incluem o saber teórico ou formalizado e o saber prático. O saber teórico (que, a partir da realidade, define o que é), investido na ação, se desdobra em saber técnico (define o que se deve fazer) e saber metodológico (como se deve fazer). O saber prático é o conhecimento gerado da ação, não formalizado, expresso mais em atos do que em palavras. Relaciona-se com os primeiros, mas não se reduz a eles, podendo ser de ordem tácita.
O agrupamento desses saberes, então, estruturaria as capacidades ou competências, cujo aspecto dinâmico está na mobilização desses saberes por uma inteligência prática – que orienta o investimento dos saberes em uso na ação – e por uma inteligência formalizadora, definida como a ação autônoma do pensamento sobre os saberes em uso, afastada da ação, quando a amplitude, ritmo e duração do trabalho do pensamento requerido para a aquisição de novos saberes são incompatíveis com o tempo da ação. Portanto, enquanto a inteligência prática realiza-se a partir da ação, a inteligência formalizadora é o processo por meio do qual se desenvolve a problematização e o pensamento abstrato.
A competência, tal como compreendida por Malglaive, tem relação com o que Zarifian(20) chama de competências em último-plano ou de competências recurso, ou seja, aquilo que se apreende de mais estável e de mais durável das atitudes face ao real e à vida social, que poderia sustentar as competências mais especificamente profissionais. Enquanto autores australianos, como Gonczi e Athanazou,(21) denominaram isso de atributos e Koch(22) chamou de metacompetências.
Entretanto, a noção de competência tem sido utilizada quase que exclusivamente associada à ação, portanto, restrita à inteligência prática. Essa restrição é bastante propícia ao uso dessa noção num sentido instrumental ou condutivista, posto que a supressão da inteligência formalizadora da estrutura dinâmica da competência admite sua identificação direta com o comportamento/desempenho, retornando-se, assim, ao princípio fundamental do behaviorismo shinneriano, a que já nos referimos neste texto: o pressuposto de que os comportamentos se confundem com o próprio domínio do conhecimento.
A completa estrutura dinâmica das competências, na perspectiva da superação do condutivismo, incorpora a idéia da construtividade do conhecimento, com base na teoria da equilibração de Piaget,(23) pela qual se compreende ocorrer um desequilíbrio quando o sujeito se defronta com situações desconhecidas ou desafiadoras. Diante de um desequilíbrio estruturalmente perturbador, o aluno reorganiza seu pensamento num nível mais elevado do que o previamente atingido, num processo recursivo que conduz a um crescimento indefinido dos conhecimentos, quer no plano quantitativo, quer no plano qualitativo. As competências seriam, portanto, as estruturas ou os esquemas mentais responsáveis pela interação dinâmica entre os saberes prévios do indivíduo – construídos mediante as experiências – e os saberes formalizados.
Compreendida como um atributo subjetivo, as competências exigiriam o deslocamento do foco dos processos educativos dos conteúdos disciplinares para o sujeito que aprende, gerando a possibilidade de efetiva e contínua transferência das aquisições cognitivas. É neste ponto que tomam importância as teses sobre as aprendizagens significativas, que destacam a relevância de todo tipo de aquisições cognitivas, desde os saberes e conhecimentos formalizados aos saberes e conhecimentos tácitos.
Diante disto, o ponto convergente da discussão curricular que toma o desenvolvimento de competências como referência é a crítica à compartimentação disciplinar do conhecimento e a defesa de um currículo que ressalte a experiência concreta dos sujeitos como situações significativas de aprendizagem. Os argumentos utilizados em defesa das competências constroem-se, assim, com base em razões predominantemente psicológicas, sustentando princípios curriculares tais como integração, globalização, interdisciplinaridade.(24).
Pelo fato de a competência implicar a resolução de problemas ou alcançar resultados, encontramos a defesa de que a pedagogia das competências poderia promover a oportunidade de se converter o currículo em um ensino integral, mesclando-se nos problemas os conhecimentos gerais, os conhecimentos profissionais, as experiências de vida e de trabalho que, normalmente, são tratadas isoladamente.(25)
É a partir desta base que se formula o significado da noção de competência no âmbito da reforma da educação básica no Brasil:
Competências são as modalidades estruturais da inteligência, ou melhor, ações e operações que utilizamos para estabelecer relações com e entre objetos, situações, fenômenos e pessoas que desejamos conhecer. As habilidades decorrem das competências adquiridas e referem-se ao plano imediato do ‘saber fazer’. Por meio das ações e operações, as habilidades aperfeiçoam-se e articulam-se, possibilitando nova reorganização das competências.(26)
Machado(27) sintetiza essa abordagem, considerando as competências como mediação entre os universos do conhecimento tácito e do conhecimento explícito, ou entre o conhecimento e a inteligência.
No campo da educação profissional, a noção de competência é abordada pelo Parecer CNE/CEB no 16/99,(28) sempre de forma relacionada à autonomia e à mobilidade que deve ter o trabalhador contemporâneo diante da instabilidade do mundo do trabalho e das rápidas transformações que caracterizam as relações de produção. Chama-se a atenção para que "a competência não se limita ao conhecer, mas vai além porque envolve o agir numa situação determinada".(29) O agir competente, portanto, inclui decidir e agir em situações imprevistas, mobilizar conhecimentos, informações e hábitos, "para aplicá-los, com capacidade de julgamento, em situações reais e concretas, individualmente e com sua equipe de trabalho".(30 ) Precisamente, a competência profissional é definida como "a capacidade de mobilizar, articular e colocar em ação valores, conhecimentos e habilidades necessários para o desempenho eficiente e eficaz de atividades requeridas pela natureza do trabalho"(31)
Poder-se-ia perguntar por que a definição de competência, no contexto da educação profissional, é construída de forma distinta das que se referem ao ensino médio. Essa distinção, na verdade, não é de essência, mas de adequação da essência à modalidade educacional, à qual correspondem novo estágio de aprendizagem, novos propósitos dessa aprendizagem e novos contextos em que ela se realiza. Mantida a perspectiva do construtivismo piagetiano, as competências continuam sendo entendidas como ações e operações mentais; entretanto, pressupõe-se que, na educação profissional, o indivíduo já tenha atingido o estágio lógico-formal e, portanto, consolidado competências básicas que resultaram em habilidades incorporadas nas estruturas mentais dos indivíduos.
Assim, a definição de competência apresentada no âmbito da educação profissional pode ser interpretada da forma como se segue: a expressão a capacidade de tem um sentido de motivação intencional e consciente, pois o exercício profissional assim o exige, além de ser coerente com o estágio de desenvolvimento do indivíduo; mobilizar, articular e colocar em ação são verbos que expressam ações e operações que podem ser consideradas implícitas e, portanto, do pensamento. Os substantivos que se seguem, quais sejam, valores, conhecimentos e habilidades, esses, sim, adquirem novas nuanças.
Os valores são acrescidos à definição, como elementos culturais e pessoais, com o mesmo sentido do que se chama de saber ser, fortemente valorizado nas relações atuais de trabalho. Os conhecimentos mantêm aqui o mesmo sentido, qual seja, são os saberes teóricos e práticos, isto é, tanto aqueles transmitidos pela escola quanto os adquiridos pela experiência (saberes tácitos). As habilidades são o resultado da construção das competências básicas que se consolidaram na forma do saber fazer, também, mobilizados na construção das competências profissionais.
Desenvolvidas em função de um universo profissional, modifica-se, ainda, a característica dos insumos geradores das competências profissionais. Esses têm um caráter técnico-científico mais definido e são associados ao contexto e às relações próprias da atividade profissional em questão, sendo mobilizados para a obtenção de resultados produtivos compatíveis com as normas de qualidade ou os critérios de desempenho solicitados pelas produções da respectiva área. Essas competências, como ações e operações mentais de ordem superior (no sentido de serem, por suposto, mais complexas do que as competências básicas), originam as habilidades profissionais.
São essas as competências que as Diretrizes e os Referenciais Curriculares Nacionais(32) pretenderam apresentar. No entanto, quando traduzidas em perfis profissionais elas acabam descrevendo, na verdade as atividades requeridas pela natureza do trabalho, aproximando-se mais daquilo que, na análise funcional, denomina-se de elementos de competência. Esses são a descrição de uma realização que deve ser conduzida por uma pessoa no âmbito de sua ocupação. Portanto, referem-se a uma ação, a um comportamento ou a um resultado que o trabalhador deve demonstrar e não aos aspectos cognitivos que orientam a realização das atividades. Em síntese, a tentativa de objetivar competências acaba aproximando-as, mais uma vez, do condutivismo.
Diante disto, concluímos que as duas primeiras tendências analíticas a que nos referimos permanecem válidas, face à constatação de que o significado da noção de competência ainda é uma construção que se processa sobre o fio da navalha que separa as faces das pedagogias psicológicas: o condutivismo e o construtivismo.
2. A Apropriação Socioeconômica da Noção de Competência
Assinalamos na introdução deste artigo que a terceira tendência analítica relaciona o surgimento da noção de competência, principalmente a de ordem profissional, com as transformações produtivas que ocorrem a partir da década de 80. Essa noção tem-se constituído como base das políticas de formação e capacitação de trabalhadores, principalmente naqueles países industrializados com maiores problemas para vincular o sistema educativo com o produtivo, o que se explica pela ênfase que este conceito coloca nos resultados e nas ações.
A natureza da escola no período pós-guerra destacou-se pelo processo de integração dos sujeitos nas esferas civil, política, social e econômica, como pressupostos de cidadania.(33) Nesse contexto, o papel e as modalidades das atividades educativas institucionalizadas organizaram-se sobre três grandes pilares: sustentar o núcleo básico da socialização conferido inicialmente pela família; transmitir valores culturais hegemônicos numa conjuntura de pleno emprego; transmitir conhecimentos e técnicas estruturantes de profissões modernas.
Os processos educativos institucionalizados assim configurados e inseridos numa articulação mais ampla de ações e instituições socializadoras, contribuíam para a construção de identidades individuais e sociais, na medida em que atuavam na adequação do projeto pessoal desejado pelos indivíduos a um projeto de sociedade. A tendência era, então, haver uma transição regulada do mundo da escola ao mundo do trabalho. A identidade profissional podia ser vista não sob o ângulo de uma trajetória individual, mas como um fenômeno estruturado socialmente, mediante políticas de formação e de emprego.
Entretanto, as transformações econômicas, políticas, sociais e culturais que ocorreram a partir da década de 70, como recomposição da crise capitalista, modificaram substancialmente o sentido dessa integração. A escolaridade e a formação se transformaram, na verdade, numa aposta incerta, em que as perspectivas de emprego ou auto-emprego dependem, exclusivamente, de atributos individuais. Nesse sentido, a importância da educação deslocou-se do projeto de sociedade para o projeto das pessoas.
Diante disto, categorias como profissão, profissionalização e profissionalidade têm seus significados afetados tanto pela instabilidade econômica quanto pelas mudanças internas à produção. A perspectiva integradora da educação consubstancia-se, agora, na promessa de empregabilidade. Nesse sentido, espera-se que a educação básica e a educação profissional inicial gerem experiências que possibilitem aos jovens passagens menos traumáticas ao mundo do trabalho. Para a população economicamente ativa essa mesma perspectiva processa-se por meio da educação continuada, visando possibilitar atualizações e reorientações profissionais como alternativas de permanência ou reinserção no mercado de trabalho.
A busca pela integração transforma-se num processo relativamente autônomo. Os processos educativos atuam na elaboração do projeto pessoal dos indivíduos, tornando-o maleável o suficiente para transformar-se em projeto possível no confronto com o mundo do trabalho. Isto se constitui, em última análise, no desenvolvimento de uma personalidade autônoma e flexível. Associado a saberes culturais e profissionais tem-se o novo saber ser, adequado às circunstâncias da empregabilidade, ou mesmo um novo profissionalismo.
Este novo profissionalismo implica, primeiro, estar preparado para a mobilidade permanente entre diferentes ocupações numa mesma empresa, entre diferentes empresas e, até mesmo, para o subemprego ou para o trabalho autônomo. Segundo, pressupõe admitir que o exercício da atividade profissional possa evoluir do restrito plano operatório – em que o valor está na execução correta e precisa das tarefas – para um plano também reflexivo, quando se tem de enfrentar a complexidade dos processos, compreendendo-os e dominando-os.
Roche(34) considera que, antes, o profissionalismo abrangia postura cívica e consciência profissional, enquanto, atualmente, apela-se também, e muito mais, às qualidades cognitivas e socioafetivas do sujeito profissional. Assim, diante de um contexto gerido por incertezas e pela possibilidade permanente de se ter que enfrentar o inusitado, exige-se colocar em jogo a capacidade de dominar a ansiedade frente ao novo, com a confiança em si. O profissionalismo consistiria em realizar as qualidades e as competências que Le Boterf(35) sintetiza em cinco menções: saber agir e reagir com pertinência; saber combinar os recursos e mobilizá-los num contexto; saber transportar, saber aprender e aprender a aprender; saber se engajar. Portanto, são as capacidades de ordem psicológica, muito mais que as de ordem técnica, as mais intensamente solicitadas.
O desafio pedagógico passa a ser, então, a construção de modos de formação que permitam a construção do novo profissionalismo, implicando o desenvolvimento de todas as dimensões da competência, em particular dos esquemas cognitivos e socioafetivos aos quais os sujeitos recorrem no enfrentamento das diversas situações de trabalho ou de não-trabalho.
Portanto, não somente os novos conceitos da produção fazem apelo ao desenvolvimento das capacidades subjetivas do trabalhador, mas o faz também o desemprego, pelo fato de obrigar o indivíduo a encontrar alternativas de integração social, exigindo dele um domínio e um conhecimento de si mesmo para mobilizar seus recursos subjetivos em prol da própria sobrevivência.
O construtivismo, com suas diversas nuanças, constitui-se o aporte psicológico da pedagogia das competências que se apresenta com finalidades também socioeconômicas. Vale registrar, então, com Miranda,(36) que as pedagogias psicológicas, das quais o construtivismo é a expressão contemporânea, aplica-se tanto aos processos intra-escolares de ensino e aprendizagem, quanto aos processos mais globais de justificação e organização da ação educativa, nas mais diversas expressões, compondo fortemente o discurso educacional contemporâneo.
Percebemos o quanto essa teoria pedagógica confere excessiva ênfase aos aspectos subjetivos dos alunos, em especial àqueles relacionados à aprendizagem, negligenciando o conjunto das determinações históricas e sociais que incidem sobre a educação, promovendo uma certa despolitização de todo o processo formativo e de inserção social. Portanto, à medida que o foco do processo educativo é o sujeito, seu projeto e sua personalidade, com vista à adaptação à instabilidade social, evidencia-se um conceito de homem como ser natural e biológico voltado para si e para sua sobrevivência.
Nesses termos, a estrutura social torna-se um sistema resultante das ações e das condutas individuais construídas por meio dessa relação de equilíbrio entre disposição humana, meio material e meio social. A satisfação das necessidades mínimas de sobrevivência mobilizaria nos sujeitos iniciativas e conquistas, tendo as competências como pressupostos e resultados psicológico-subjetivos do processo adaptativo à sociedade. As competências cognitivas seriam os mecanismos de adaptação ao meio material e as socioafetivas, os mecanismos de adaptação ao meio social. Este é o movimento que denominamos, em síntese, como a psicologização das questões sociais.
3. Considerações Finais: dos Fragmentos à Totalidade
Um primeiro conjunto de críticas que poderíamos fazer ao significado da competência pelo aporte da psicologia cognitiva seria interna a sua própria origem. Vimos que a epistemologia piagetiana considera que a atividade do aluno (interna ou externa) é o principal motor da construção do conhecimento. Por esta perspectiva, salienta-se a importância dos métodos ativos que facilitem a ação do aluno – física e mental – sobre a realidade. No entanto, como modelo didático, tem-se chegado, em muitos casos, a um reducionismo metodologista ou ativista, negligenciando a importância dos conceitos.
Por razões semelhantes, muitas vezes, a ênfase na pedagogia por projetos ou baseada em problemas acaba tratando indistintamente os problemas cotidianos, científicos e escolares, promovendo-se equívocos bastante delicados. Enquanto nos problemas cotidianos o conhecimento costuma estar mais orientado para o resultado do que para a explicação, a resolução de problemas científicos tem por finalidade não tanto a obtenção de sucesso mas a compreensão das razões de sua ocorrência. Em síntese, o problema científico não tem como objetivo estrito alcançar um resultado prático, mas atribuir-lhe significado teórico que possa ser generalizado na forma de princípios aplicáveis a novas situações. Já os problemas escolares encontram-se entre os dois primeiros porque, ainda que formulados com base no cotidiano, eles devem reverter as motivações dos alunos, inicialmente pragmáticas, para a compreensão tanto do problema quanto dos resultados. Não obstante, vemos que muitos projetos e problemas escolares levam o aluno, por sua motivação, atitudes e conhecimentos prévios, a orientar-se muito mais para a obtenção de resultados concretos do que para a compreensão dos princípios científicos.
A defesa de currículos centrados em situações significativas de aprendizagem, sob argumentos psicológicos, tem priorizado o atendimento às necessidades e interesses dos alunos sob uma ótica individualista e a-histórica, destacando-se como fundamento da aprendizagem uma espécie de lei de desenvolvimento interno da personalidade individual, sem dar relevância às dimensões sociohistóricas, culturais e econômicas do aprendizado, do processo de construção do conhecimento(37) e da política educacional.
Perguntaríamos, então, como converter a competência em potencialidade humana de emancipação sociocoletiva e de transformação social? Este é um movimento de ressignificação dessa noção no sentido contra-hegemônico que, do ponto de vista da construção curricular, precisa considerar alguns pressupostos epistemológicos e ético-políticos, tais como os seguintes: a) conceber a realidade concreta como uma totalidade, de modo que o currículo busque contemplar todas as dimensões do conhecimento, em que se incluem as suas determinações e potencialidades técnico-operacionais mas também as econômicas, as físico e socioambientais, as sociohistóricas e as culturais; b) que o homem, como sujeito histórico-social, não se dispõe psicologicamente a adaptar-se às instabilidades sociais, mas a enfrentar a realidade concreta dela se apropriando, transformando-a e transformando-se permanentemente; c) que o processo de subjetivação não é intrínseco ao próprio indivíduo, mas síntese das relações sociais em que o homem se apropria da realidade objetiva e, assim como apreende subjetivamente suas leis, objetiva-se como ser social por meio de suas próprias ações sobre a realidade; d) que a contextualização dos conteúdos científicos em realidades repletas de vivências e como mecanismo que proporciona a aprendizagem significativa não se esgota na aparência desta mesma realidade, mas a compreende de forma pensada, para além do senso comum; e) que as disciplinas científicas e escolares possuem uma história e uma identidade epistemológica, de modo que suas fronteiras não se dissolvem por simples opção metodológica. Portanto, a construção do conhecimento pela apropriação subjetiva dos conteúdos disciplinares processa-se como representação de uma realidade externa ao pensamento, ainda que trabalhada por ele, num processo dialético de subjetivação e objetivação.
Sob esses princípios epistemológicos e ético-políticos, não se pode conceber a educação como forma de propiciar às crianças, aos jovens e aos adultos da classe trabalhadora melhores condições de adaptação ao meio. Conquanto a educação contribua para uma certa conformação do homem à realidade material e social que ele enfrenta, ela deve possibilitar a compreensão dessa mesma realidade com o fim de dominá-la e transformá-la.
No âmbito da educação profissional, os processos produtivos devem ser enfocados não somente pelo conteúdo científico-tecnológico e pelo potencial econômico, mas vistos à luz da unidade entre epistemologia e metodologia, tendo o trabalho como princípio educativo. Desta forma, os processos produtivos serão vistos como momentos históricos e como relações políticas e sociais concretas, que possuem tanto por uma cientificidade quanto uma historicidade. As competências dos trabalhadores são mediações complexas das relações sociais tecidas entre os sujeitos e destes com o objeto material e simbólico de seu trabalho. Por conseqüência, elas não se esgotam nem se definem por concepções psicológicas dos sujeitos e da aprendizagem, nem por abordagens funcionalistas dos processos de trabalho e da sociedade.
Notas
1 Na Europa podemos citar, por exemplo, França, Inglaterra e Espanha; e na América Latina, México, Argentina, Chile e Brasil.
2 MOREIRA, Antônio Flávio Barbosa. A Psicologia ... e o resto: o currículo segundo César Coll. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 100, p. 93-109, mar. 1997.
3 TANGUY, Lucie. Racionalidade pedagógica e legitimidade política. In: ROPÉ, Françoise; TANGUY, Lucie. Saberes e competências: o uso de tais noções na escola e na empresa. São Paulo: Papirus, 1997. p. 25-68.
4 Professor da Universidade de Harvard e apontado por Mertens (1996) como um dos pioneiros do movimento moderno da competência.
5 Apud. MALGLAIVE, Gérard. Ensinar adultos. Portugal: Porto Ed., 1995. p. 112.
6 Na obra La révolution scientifique de l’enseignement (Bruxelles, Dessart et Mardaga, 1969, apud MALGLAIVE, Gérard. (1995) op. cit., p. 110. B. F. Skinner se esforça para aplicar a lei do efeito e dos contingentes de reforço às situações escolares e, portanto, à aprendizagem intelectual.
7 Id. ibid.
8 Apud. MALGLAIVE, Gérard. (1995) op. cit., p. 112.
9 MAGER, R. F. Comment définir les objectifs pédagogiques. Paris: Bordas, 1977. Os princípios fundantes dos objetivos são: a) estabelecidos antes do começo das atividades de formação (princípio da exaustividade previsional); b) enunciados em termos de comportamentos observáveis do aprendiz (princípio da operacionalização comportamental); c) permitem ao formador aumentar a coerência das suas escolhas entre meios de ensino e de animação e seus procedimentos de avaliação (princípio da racionalidade didática); d) auxiliam as pessoas a melhor orientar os seus esforços de estudo e a melhorar as suas hipóteses de êxito (princípio da eficácia da aprendizagem).
10 Id. ibid.
11 BOBBIT, J. F. The curriculum. Boston: Houghton Mifflin.
12 Taylor formulou quatro princípios de gerenciamento: a) substituição do empirismo pelo cientificismo, isto é, pela teorização dos elementos que subjazem e ordenam a execução das tarefas a serem prescritas aos trabalhadores; b) seleção e treinamento dos trabalhadores segundo esses princípios teóricos; c) controle da execução das tarefas segundo esses princípios teóricos; d) divisão coerente do trabalho e da responsabilidade entre os administradores e os operários.
13 MALGLAIVE, Gérard. Competências e engenharia de formação. In: PARLIER, Michel; WITTE, Serge de. La compétence mythe, construction ou realité? Paris: L’ Harmattan., 1994. p. 153-168 ; Id. Ensinar Adultos. Portugal: Porto Ed., 1995.
14 Id. (1994) op. cit., p. 106.
15 Id. (1995) op. cit., p. 110.
16 Id. (1995) op. cit., p. 118.
17 PERRENOUD, Philippe. Construir as competências desde a escola. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.
18 Id. (1994) op. cit., p. 153.
19 MALGLAIVE, Gérard. (1994) op. cit., p. 155-164 e (1995) op. cit., p. 122-128.
20 ZARIFIAN, Phillippe. Objectif compétence. Paris: Liaisons, 1999.
21 GONCZI Adrew; ATHANASOU, James. Instrumentación de la educación basada en competencias: perspectivas de la teoria y la prática en Australia. México: Editorial Limusa, 1995.
22 KOCH, Pierre. Enterprise qualifiante et enterprise apprenante: concepts et théories sous-jacentes.: Education Permanente, n. 140, 1999, p. 61-81.
23 Breves explicações sobre o modelo cognitivo de Piaget podem ser encontrados em Malglaive (1995), SANTOMÉ, Jurjo Torres. Globalização e interdisciplinaridade: o currículo integrado. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998; e Brunner e Zeltner. Dicionário de psicopedagogia e psicologia educacional. 2.ed., Petropolis (RJ): Vozes. 2000. Uma importante análise crítica sobre a transposição dos estudos sobre a psicologia do desenvolvimento para a pedagogia, é desenvolvida por CARVALHO, José Sérgio F. Construtivismo: uma pedagogia esquecida da escola. Porto Alegre: Artmed, 2001.
24 Para discussão desses princípios pode-se recorrer, por exemplo, a SANTOMÉ, Jurjo Torres (1998) op. cit. e RAMOS, Marise N. A pedagogia das competências: autonomia ou adaptação. São Paulo: Cortez, no prelo. As discussões sobre as possibilidades de um currículo integrado devem considerar não somente os aspectos psicológicos e pedagógicos, mas também epistemológicos e metodológicos relacionados com a estrutura das ciências e com as especificidades dos conhecimentos científicos e dos conhecimentos escolares.
25 Algumas construções teóricas subjacentes aos princípios do currículo globalizado ou integrado e da problematização já estavam presentes nas teorias de John Dewey e são agora retomadas. Atualmente tem-se falado na epistemologia experiencial ou epistemologia da prática, com base nas análises de filósofos neopragmáticos como Richard Bernstein e Richard Rorty, além de Donald Schön, por exemplo, na obra SCHÖN, D. Educando o profissional reflexivo, Porto Alegre: ArtMed, 2000. Aspectos dessa discussão podem ser encontrados também em DOLL Jr., William E. Currículo: uma perspectiva pós-moderna. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
26 BRASIL. Ministério da Educação. ENEM: documento básico 2000, Brasília, 1999. p. 7.
27 MACHADO, Nilson. Eixos teóricos que estruturam o ENEM: conceitos principais. interdisciplinaridade e contextuação. In: SEMINÁRIO DO EXAME NACIONAL DO ENSINO MÉDIO 1, Brasília,: INEP: 1999.
28 CONSELHO NACIONAL DE EDUCACAO (Brasil). Câmara de Educação Básica. Parecer 16/99, aprovado em 05 de outubro de 1999. Documenta, Brasília, n. 457, p. 3-73, out. 1999. Fixa as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional de nível técnico.
29 Id. ibid., p. 32.
30 Id. ibid., p. 33.
31 Id. Resolução 4/99, aprovada em 08 de dezembro de 1999. Documenta, Brasília, n. 459, p. 277-306, dez. 1999. p.19. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional de nível técnico.
32 BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Media e Tecnológica. Educação profissional : referenciais curriculares nacionais da educação profissional de nível técnico. Brasília, 2000. 19 v
33 GENTILI, Pablo. Educar para o desemprego: a desintegração da promessa integradora. In: FRIGOTTO, Gaudêncio (Org.). Educação e crise do trabalho: perspectivas de final de século. Petrópolis (RJ): Vozes, 1998. p. 76-99 e TANGUY, Lucie. Mudanças técnicas e recomposição dos saberes ensinados aos trabalhadores: do discurso às práticas. In: DESAULNIERS, Julieta. Trabalho & formação & competências. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998. p. 47-80.
34 ROCHE, Janine. Que fault-il entendre par professionnalisation? Education Permanente, n.140, 1999. p. 35-50.
35 Apud. ROCHE (1999) op. cit., p. 41.
36 MIRANDA, Marília Gouvea de. Pedagogias psicológicas e reforma educacional. In: DUARTE, Newton (Org.). Sobre o construtivismo. Campinas: Autores Associados, 2000. p.23-40.
37 Uma sintética mas densa crítica ao individualismo da teoria de Piaget pode ser encontrada nos textos reunidos em DUARTE,( 2000) op. cit..